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terça-feira, 2 de março de 2010

INSTRUMENTOS E MÉTODOS DE MITIGAÇÃO DA DESIGUALDADE EM DIREITO CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL

Joaquim B. Barbosa Gomes



Solicita-me o Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais um estudo jurídico a respeito das chamadas «medidas compensatórias» destinadas a promover a implementação do princípio constitucional da igualdade em relação à comunidade negra brasileira.
Cuida-se, pois, de examinar a possibilidade jurídica de introdução, no nosso sistema jurídico, de mecanismos de integração social largamente adotados nos Estados Unidos, sob a denominação de «affirmative action» (ação afirmativa), e na Europa, sob o epíteto de «discrimination positive» (discriminação positiva), bem como em outros países, sob as mais diversas denominações.
Trata-se de tema quase desconhecido entre nós, tanto em sua concepção quanto nas suas múltiplas formas de implementação. Daí a necessidade, de nossa parte, de algumas explicações acerca da sua gênese, dos objetivos almejados, da problemática constitucional por ele suscitada, das modalidades de programas e dos critérios e condições indispensáveis à sua compatibilização com os princípios constitucionais.


1. AÇÃO AFIRMATIVA E PRINCÍPIO DA IGUALDADE

A noção de igualdade, como categoria jurídica de primeira grandeza, teve sua emergência como princípio jurídico incontornável nos documentos constitucionais promulgados imediamente após as revoluções do final do século XVIII. Com efeito, foi a partir das experiências institucionais pioneiras dos EUA e da França que se edificou o conceito de igualdade perante a lei, uma construção jurídico-formal segundo a qual a lei, genérica e abstrata, deve ser igual para todos, sem qualquer distinção ou privilégio, devendo o aplicador fazê-la incidir de forma neutra sobre as situações jurídicas concretas e sobre os conflitos inter-individuais. Concebida para o fim específico de abolir os privilégios típicos do ancien régime e para dar cabo às distinções e discriminações baseadas na linhagem, no «rang», na rigída e imutável hierarquização social por classes, essa concepção de igualdade jurídica, meramente formal, firmou-se como idéia-chave do constitucionalismo que floresceu no século XIX e prosseguiu sua trajetória triunfante por boa parte do século XX. Por definição, conforme bem assinalado por Guilherme Machado Dray, «o princípio da igualdade perante a lei consistiria na simples criação de um espaço neutro, onde as virtudes e as capacidades dos indivíduos livremente se poderiam desenvolver. Os privilégios, em sentido inverso, representavam nesta perspectiva a criação pelo homem de espaços e de zonas delimitadas, susceptíveis de criarem desigualdades artificiais e nessa medida intoleráveis» . Em suma, segundo esse conceito de igualdade que veio a dar sustentação jurídica ao Estado liberal burguês, a lei deve ser igual para todos, sem distinções de qualquer espécie.
Abstrata por natureza e levada a extremos por força do postulado da neutralidade estatal (uma outra noção cara ao ideário liberal), o princípio da igualdade perante a lei foi identificado, durante muito tempo, como garantia da concretização da liberdade. Para os pensadores e teóricos da escola liberal, bastaria a simples inclusão da igualdade no rol dos direitos fundamentais para se ter esta como efetivamente assegurada no sistema constitucional.
A experiência e os estudos de direito e política comparada, contudo, têm demonstrado que, tal como construída, à luz da cartilha liberal oitocentista, a igualdade jurídica não passa de mera ficção. «Paulatinamente, porém», sustenta o jurista português Guilherme Machado Dray, «a concepção de uma igualdade puramente formal, assente no princípio geral da igualdade perante a lei, começou a ser questionada, quando se constatou que a igualdade de direitos não era, por si só, suficiente para tornar acessíveis a quem era socialmente desfavorecido as oportunidades de que gozavam os indivíduos socialmente privilegiados. Importaria, pois, colocar os primeiros ao mesmo nível de partida. Em vez de igualdade de oportunidades, importava falar em igualdade de condições». Imperiosa, portanto, seria a adoção de uma concepção substancial da igualdade, que levasse em conta em sua operacionalização não apenas certas condições fáticas e econômicas, mas também certos comportamentos inevitáveis da convivência humana, como é o caso da discriminação. Assim, assinala a ilustre Professora de Minas Gerais, Carmen Lucia Antunes Rocha, «concluiu-se, então, que proibir a discriminação não era bastante para se ter a efetividade do princípio da igualdade jurídica. O que naquele modelo se tinha e se tem é tão-somente o princípio da vedação da desigualdade, ou da invalidade do comportamento motivado por preconceito manifesto ou comprovado (ou comprovável), o que não pode ser considerado o mesmo que garantir a igualdade jurídica».
Como se vê, em lugar da concepção «estática» da igualdade extraída das revoluções francesa e americana, cuida-se nos dias atuais de se consolidar a noção de igualdade material ou substancial, que, longe de se apegar ao formalismo e à abstração da concepção igualitária do pensamento liberal oitocentista, recomenda, inversamente, uma noção «dinâmica», «militante» de igualdade, na qual necessariamente são devidamente pesadas e avaliadas as desigualdades concretas existentes na sociedade, de sorte que as situações desiguais sejam tratadas de maneira dessemelhante, evitando-se assim o aprofundamento e a perpetuação de desigualdades engendradas pela própria sociedade. Produto do Estado Social de Direito, a igualdade substancial ou material propugna redobrada atenção por parte dos aplicadores da norma jurídica à variedade das situações individuais, de modo a impedir que o dogma liberal da igualdade formal impeça ou dificulte a proteção e a defesa dos interesses das pessoas socialmente fragilizadas e desfavorecidas.
Da transição da ultrapassada noção de igualdade «estática» ou «formal» ao novo conceito de igualdade «substancial» surge a idéia de «igualdade de oportunidades», noção justificadora de diversos experimentos constitucionais pautados na necessidade de se extinguir ou de pelo menos mitigar o peso das desigualdades econômicas e sociais e, conseqüentemente, de promover a justiça social.
Dessa nova visão resultou o surgimento, em diversos ordenamentos jurídicos nacionais e na esfera do Direito Internacional dos Direitos Humanos , de políticas sociais de apoio e de promoção de determinados grupos socialmente fragilizados. Vale dizer, da concepção liberal de igualdade que capta o ser humano em sua conformação abstrata, genérica, o Direito passa a percebê-lo e a tratá-lo em sua especificidade, como ser dotado de características singularizantes. No dizer de Flávia Piovesan, «do ente abstrato, genérico, destituído de cor, sexo, idade, classe social, dentre outros critérios, emerge o sujeito de direito concreto, historicamente situado, com especificidades e particularidades. Daí apontar-se não mais ao indivíduo genérica e abstratamente considerado, mas ao indivíduo «especificado», considerando-se categorizações relativas ao gênero, idade, etnia, raça, etc.» O «indivíduo especificado», portanto, será o alvo dessas novas políticas sociais.
A essas políticas sociais, que nada mais são do que tentativas de concretização da igualdade substancial ou material, dá-se a denominação de «ação afirmativa» ou, na terminologia do direito europeu, de «discriminação positiva».
A consagração normativa dessas políticas sociais representa, pois, um momento de ruptura na evolução do Estado moderno. Com efeito, como bem assinala a Professora Carmen Lúcia Antunes Rocha, «em nenhum Estado Democrático, até a década de 60, e em quase nenhum até esta última década do século XX se cuidou de promover a igualação e vencerem-se os preconceitos por comportamentos estatais e particulares obrigatórios pelos quais se superassem todas as formas de desigualação injusta. Os negros, os pobres, os marginalizados pela raça, pelo sexo, por opção religiosa, por condições econômicas inferiores, por deficiências físicas ou psíquicas, por idade etc. continuam em estado de desalento jurídico em grande parte do mundo. Inobstante a garantia constitucional da dignidade humana igual para todos, da liberdade igual para todos, não são poucos os homens e mulheres que continuam sem ter acesso às iguais oportunidades mínimas de trabalho, de participação política, de cidadania criativa e comprometida, deixados que são à margem da convivência social, da experiência democrática na sociedade política». Assim, nessa nova postura o Estado abandona a sua tradicional posição de neutralidade e de mero espectador dos embates que se travam no campo da convivência entre os homens e passa a atuar «ativamente na busca» da concretização da igualdade positivada nos textos constitucionais.
O País pioneiro na adoção das políticas sociais denominadas «ações afirmativas» foram, como é sabido, os Estados Unidos da América. Tais políticas foram concebidas inicialmente como mecanismos tendentes a solucionar aquilo que um célebre autor escandinavo qualificou de «o dilema americano»: a marginalização social e econômica do negro na sociedade americana. Posteriormente, elas foram estendidas às mulheres, a outras minorias étnicas e nacionais, aos índios e aos deficientes físicos.
As ações afirmativas se definem como políticas públicas (e também privadas) voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física. Impostas ou sugeridas pelo Estado, por seus entes vinculados e até mesmo por entidades puramente privadas, elas visam a combater não somente as manifestações flagrantes de discriminação, mas também a discriminação de fundo cultural, estrutural, enraizada na sociedade. De cunho pedagógico e não raramente impregnadas de um caráter de exemplaridade, têm como meta, também, o engendramento de transformações culturais e sociais relevantes, inculcando nos atores sociais a utilidade e a necessidade da observância dos princípios do pluralismo e da diversidade nas mais diversas esferas do convívio humano. Constituem, por assim dizer, a mais eloqüente manifestação da moderna idéia de Estado promovente, atuante, eis que de sua concepção, implantação e delimitação jurídica participam todos os órgãos estatais essenciais, aí incluindo-se o Poder Judiciário, que ora se apresenta no seu tradicional papel de guardião da integridade do sistema jurídico como um todo, ora como instituição formuladora de políticas tendentes a corrigir as distorções provocadas pela discriminação. Trata-se, em suma, de um mecanismo sócio-jurídico destinado a viabilizar primordialmente a harmonia e a paz social, que são seriamente perturbadas quando um grupo social expressivo se vê à margem do processo produtivo e dos benefícios do progresso, mas também a robustecer o próprio desenvolvimento econômico do país, eis que inegavelmente a universalização do acesso à educação e ao mercado de trabalho tem como consequência inexorável o crescimento macroeconômico, a ampliação generalizada dos negócios, numa palavra, o crescimento do país como um todo. Nesse sentido, não se deve perder de vista o fato de que a história universal não registra, na era contemporânea, nenhum exemplo de nação que tenha se erguido de uma condição periférica à de potência econômica e política, digna de respeito na cena política internacional, mantendo no plano doméstico uma política de exclusão, aberta ou dissimulada, legal ou meramente informal, em relação a uma parcela expressiva de seu povo.
As ações afirmativas constituem, pois, um remédio de razoável eficácia para esses males. É indispensável, porém,uma ampla conscientização da própria sociedade e das lideranças políticas de maior expressão acerca da absoluta necessidade de se eliminar ou de se reduzir as desigualdades sociais que operam em detrimento das minorias. E mais: é preciso uma ampla conscientização sobre o fato de que a marginalização sócio-econômico a que são relegadas as minorias, especialmente as raciais, resulta de um único fenômeno: a discriminação.
Com efeito, a discriminação, como um componente indissociável do relacionamento entre os seres humanos, reveste-se inegavelmente de uma roupagem competitiva. Afinal, discriminar nada mais é do que uma tentativa de se reduzirem as perspectivas de uns em benefício de outros. Quanto mais intensa a discriminação e mais poderosos os mecanismos inerciais que impedem o seu combate, mais ampla se mostra a clivagem entre discriminador e discriminado. Daí resulta, inevitavelmente, que aos esforços de uns em prol da concretização da igualdade se contrapõem os interesses de outros na manutenção do status quo. É curial, pois, que as ações afirmativas, mecanismo jurídico concebido com vistas a quebrar essa dinâmica perversa, sofram o influxo dessas forças contrapostas e atraiam considerável resistência, sobretudo da parte daqueles que historicamente se beneficiaram da exclusão dos grupos socialmente fragilizados.
Ao Estado cabe, assim, a opção entre duas posturas distintas: manter-se firme na posição de neutralidade, e permitir a total subjugação dos grupos sociais desprovidos de voz, de força política, de meios de fazer valer os seus direitos; ou, ao contrário, atuar ativamente no sentido da mitigação das desigualdades sociais que, como é de todos sabido, têm como público alvo precisamente as minorias raciais, étnicas, sexuais e nacionais.
Com efeito, a sociedade liberal-capitalista ocidental tem como uma de suas idéias-chave a noção de neutralidade estatal, que se expressa de diversas maneiras: neutralidade em matéria econômica, no domínio espiritual e na esfera íntima das pessoas. Na maioria das nações pluriétnicas e pluriconfessionais, o abstencionismo estatal se traduz na crença de que a mera introdução, nos respectivos textos constitucionais, de princípios e regras asseguradoras de uma igualdade formal perante a lei, seria suficiente para garantir a existência de sociedades harmônicas, onde seria assegurada a todos, independentemente de raça, credo, gênero ou origem nacional, efetiva igualdade de acesso ao que comumente se tem como conducente ao bem-estar individual e coletivo. Esta era, como já dito, a visão liberal derivada das idéias iluministas que conduziram às revoluções políticas do século XVIII.
Mas essa suposta neutralidade estatal tem-se revelado um formidável fracasso, especialmente nas sociedades que durante muitos séculos mantiveram certos grupos ou categorias de pessoas em posição de subjugação legal, de inferioridade legitimada pela lei, em suma, em países com longo passado de escravidão. Nesses países, apesar da existência de inumeráveis dispositivos constitucionais e legais, muitos deles promulgados com o objetivo expresso de fazer cessar o status de inferioridade em que se encontravam os grupos sociais historicamente discriminados, passaram-se os anos (e séculos) e a situação desses grupos marginalizados pouco ou quase nada mudou.
Tal estado de coisas conduz a duas constatações indisputáveis. Em primeiro lugar, a certeza de que proclamações jurídicas por si sós, revistam elas a forma de dispositivos constitucionais ou normas de inferior hierarquia normativa, não são suficientes para reverter um quadro social que finca âncoras na tradição cultural de cada país, no imaginário coletivo, em suma, na percepção generalizada de que a uns devem ser reservados papéis de franca dominação e a outros, papéis indicativos do status de inferioridade, de subordinação. Em segundo lugar, o reconhecimento de que a reversão de um tal quadro só será viável com a renúncia do Estado à sua histórica neutralidade em questões sociais, devendo assumir, ao contrário, uma posição ativa, até mesmo radical se vista à luz dos princípios norteadores da sociedade liberal clássica.
Desse imperativo de atuação ativa do Estado nasceram as Ações Afirmativas, concebidas inicialmente nos Estados Unidos da América, mas hoje já adotadas em diversos países europeus, asiáticos e africanos, com as adaptações necessárias à situação de cada país. O Brasil, país com a mais longa história de escravidão das Américas e com uma inabalável tradição patriarcal, mal começa a admitir, pelo menos em nível acadêmico, a discussão do tema .

2. DEFINIÇÃO E OBJETIVOS DAS AÇÕES AFIRMATIVAS

A introdução das políticas de ação afirmativa, criação pioneira do Direito dos EUA, representou, em essência, a mudança de postura do Estado, que em nome de uma suposta neutralidade, aplicava suas políticas governamentais indistintamente, ignorando a importância de fatores como sexo, raça, cor, status nacional. Nessa nova postura, passa o Estado a levar em conta tais fatores no momento de contratar seus funcionários ou de regular a contratação por outrem, ou ainda no momento de oferecer as oportunidades de acesso aos estabelecimentos de educação. Numa palavra, ao invés de conceber políticas públicas de que todos seriam beneficiários independentemente da sua raça, cor ou sexo, o Estado passa a levar em conta esses fatores na implementação das suas decisões, não para prejudicar quem quer que seja, mas para evitar que a discriminação, que inegavelmente tem um fundo histórico e cultural, e não raro se subtrai ao enquadramento nas categorias jurídicas clássicas, finde por perpertuar as iniquidades sociais.
2.1 Definição – Inicialmente, as Ações Afirmativas se definiam como um mero “encorajamento” por parte do Estado a que as pessoas com poder decisório nas áreas pública e privada levassem em consideração, nas suas decisões relativas a temas sensíveis como o acesso à educação e ao mercado de trabalho, fatores até então tidos como formalmente irrelevantes pela grande maioria dos responsáveis políticos e empresariais, quais sejam, a raça, a cor, o sexo e a origem nacional das pessoas. Tal encorajamento tinha por meta, tanto quanto possível, ver concretizado o ideal de que tanto as escolas quanto as empresas refletissem em sua composição a representação de cada grupo na sociedade ou no respectivo mercado de trabalho.
Num segundo momento, talvez em decorrência da constatação de ineficácia dos procedimentos clássicos de combate à discriminação, deu-se início a um processo de alteração conceitual do instituto, que passou a ser associado à ideia, mais ousada, de realização da igualdade de oportunidades através da imposição de cotas rígidas de acesso de representantes das minorias a determinados setores do mercado de trabalho e a instituições educacionais. Data também desse período a vinculação entre ação afirmativa e o atingimento de certas metas estatísticas concernentes à presença de negros e mulheres num determinado setor do mercado de trabalho ou numa determinada instituição de ensino.
Atualmente, as ações afirmativas podem ser definidas como um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero, por deficiência física e de origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego. Diferentemente das políticas governamentais antidiscriminatórias baseadas em leis de conteúdo meramente proibitivo, que se singularizam por oferecerem às respectivas vítimas tão somente instrumentos jurídicos de caráter reparatório e de intervenção ex post facto, as ações afirmativas têm natureza multifacetária , e visam a evitar que a discriminação se verifique nas formas usualmente conhecidas – isto é, formalmente, por meio de normas de aplicação geral ou específica, ou através de mecanismos informais, difusos, estruturais, enraizados nas práticas culturais e no imaginário coletivo. Em síntese, trata-se de políticas e de mecanismos de inclusão concebidos por entidades públicas, privadas e por órgãos dotados de competência jurisdicional, com vistas à concretização de um objetivo constitucional universalmente reconhecido - o da efetiva igualdade de oportunidades a que todos os seres humanos têm direito.
Entre os teóricos do Direito Público no Brasil, coube à ilustre professora Carmen Lúcia Antunes Rocha o desafio de traduzir para a comunidade jurídica brasileira, em sublime artigo, a mais completa noção acerca do enquadramento jurídico-doutrinário das ações afirmativas. Classificando-as corretamente como a mais avançada tentativa de concretização do princípio jurídico da igualdade, ela afirma com propriedade que «a definição jurídica objetiva e racional da desigualdade dos desiguais, histórica e culturalmente discriminados, é concebida como uma forma para se promover a igualdade daqueles que foram e são marginalizados por preconceitos encravados na cultura dominante na sociedade. Por esta desigualação positiva promove-se a igualação jurídica efetiva; por ela afirma-se uma fórmula jurídica para se provocar uma efetiva igualação social, política, econômica no e segundo o Direito, tal como assegurado formal e materialmente no sistema constitucional democrático. A ação afirmativa é, então, uma forma jurídica para se superar o isolamento ou a diminuição social a que se acham sujeitas as minorias». Essa engenhosa criação jurídico-político-social refletiria ainda, segundo a autora, uma «mudança comportamental dos juízes constitucionais de todo o mundo democrático do pós-guerra», que teriam se conscientizado da necessidade de uma «transformação na forma de se conceberem e aplicarem os direitos, especialmente aqueles listados entre os fundamentais. Não bastavam as letras formalizadoras das garantias prometidas; era imprescindível instrumentalizarem-se as promessas garantidas por uma atuação exigível do Estado e da sociedade. Na esteira desse pensamento, pois, é que a ação afirmativa emergiu como a face construtiva e construtora do novo conteúdo a ser buscado no princípio da igualdade jurídica. O Direito Constitucional, posto em aberto, mutante e mutável para se fazer permanentemente adequado às demandas sociais, não podia persistir no conceito estático de um direito de igualdade pronto, realizado segundo parâmetros históricos eventualmente ultrapassados.» E prossegue a ilustre autora: «O conteúdo, de origem bíblica, de tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida em que se desigualam – sempre lembrado como sendo a essência do princípio da igualdade jurídica – encontrou uma nova interpretação no acolhimento jurisprudencial concernente à ação afirmativa. Segundo essa nova interpretação, a desigualdade que se pretende e se necessita impedir para se realizar a igualdade no Direito não pode ser extraída, ou cogitada, apenas no momento em que se tomam as pessoas postas em dada situação submetida ao Direito, senão que se deve atentar para a igualdade jurídica a partir da consideração de toda a dinâmica histórica da sociedade, para que se focalize e se retrate não apenas um instante da vida social, aprisionada estaticamente e desvinculada da realidade histórica de determinado grupo social. Há que se ampliar o foco da vida política em sua dinâmica, cobrindo espaço histórico que se reflita ainda no presente, provocando agora desigualdades nascentes de preconceitos passados, e não de todo extintos. A discriminação de ontem pode ainda tingir a pele que se vê de cor diversa da que predomina entre os que detêm direitos e poderes hoje.»

2.2 Objetivos das Ações Afirmativas – Os partidários das Ações Afirmativas justificam sua adoção com o argumento de que esse tipo de política social seria apta a atingir uma série de objetivos que restariam normalmente inalcançados caso a estratégia de combate à discriminação se limitasse à adoção, no campo normativo, de regras meramente proibitivas de discriminação. Numa palavra, não basta proibir, é preciso também promover, tornando rotineira a observância dos princípios da diversidade e do pluralismo, de tal sorte que venha a operar-se uma transformação no comportamento e na mentalidade dos membros da sociedade, cujos "mores" são fortemente condicionados pela tradição, pelos costumes, pela história.
Assim, além do ideal de concretização da igualdade de oportunidades, figuraria entre os objetivos almejados com as políticas afirmativas o de induzir transformações de ordem cultural, pedagógica e psicológica, aptas a subtrair do imaginário coletivo a idéia de supremacia e de subordinação de uma raça em relação a outra, do homem em relação à mulher. O elemento propulsor dessas transformações seria, assim, o caráter de exemplaridade de que se revestem certas modalidades de ação afirmativa, cuja eficácia como agente de transformação social poucos até hoje ousaram negar. Ou seja, de um lado essas políticas simbolizariam o reconhecimento oficial da persistência e da perenidade das práticas discriminatórias e da necessidade de sua eliminação. De outro, elas teriam também por meta atingir objetivos de natureza cultural, eis que delas inevitavelmente resultam a trivialização, a banalização, na polis, da necessidade e da utilidade de políticas públicas voltadas à implantação do pluralismo e da diversidade.
Por outro lado, as ações afirmativas têm como objetivo não apenas coibir a discriminação do presente, mas sobretudo eliminar os «efeitos persistentes» (psicológicos, culturais e comportamentais) da discriminação do passado, que tendem a se perpetuar. Esses efeitos se revelam na chamada «discriminação estrutural», espelhada nas abismais desigualdades sociais entre grupos dominantes e grupos marginalizados.
Figura também como meta das ações afirmativas a implantação de uma certa «diversidade» e de uma maior «representatividade» dos grupos minoritários nos mais diversos domínios de atividade pública e privada.
Partindo da premissa de que tais grupos normalmente não são representados em certas áreas ou são subrepresentados seja em posições de mando e prestígio no mercado de trabalho e nas atividades estatais, seja nas instituições de formação que abrem as portas ao sucesso e às realizações individuais, as políticas afirmativas cumprem o importante papel de cobrir essas lacunas, fazendo com que a ocupação das posições do Estado e do mercado de trabalho se faça, na medida do possível, em maior harmonia com o caráter plúrimo da sociedade. Nesse sentido, o efeito mais visível dessas políticas, além do estabelecimento da diversidade e representatividade propriamente ditas, é o de eliminar as «barreiras artificiais e invisíveis» que emperram o avanço de negros e mulheres, independentemente da existência ou não de política oficial tendente a subalternizá-los.
Por outro lado, a implantação da diversidade acarreta inegáveis benefícios para os próprios países que se definem como multirraciais e que assistem, a cada dia, o incremento do fenômeno do multiculturalismo. Para esses países, constitui um erro estratégico inadmissível deixar de oferecer oportunidades efetivas de educação e de emprego a certos segmentos da população, pois isto pode revelar-se, num futuro bem próximo, altamente prejudicial à competitividade e à produtividade econômica do país. Portanto, agir «afirmativamente» significa também zelar pela pujança econômica da nação.
Por fim, as ações afirmativas cumpririam o objetivo de criar as chamadas personalidades emblemáticas. Vale dizer, elas seriam um dos principais instrumentos de criação de exemplos vivos de mobilidade social ascendente: os representantes de minorias que, por terem alcançado posições de prestígio e poder, serviriam de exemplo às gerações mais jovens, que veriam em suas carreiras e realizações pessoais a sinalização de que não haveria, chegada a sua vez, obstáculos intransponíveis à realização de seus sonhos e à concretização de seus projetos de vida. Noutras palavras, com esta conotação as ações afirmativas atuariam como mecanismo de incentivo à educação e ao aprimoramento de jovens integrantes de grupos minoritários, que invariavelmente assistem ao bloqueio de seu potencial de inventividade, de criação e de motivação ao aprimoramento e ao crescimento individual, vítimas das sutilezas de um sistema jurídico, político, econômico e social concebido para mantê-los na posição de excluídos.

3. A PROBLEMÁTICA CONSTITUCIONAL

As ações afirmativas situam-se no cerne do debate constitucional contemporâneo, e interferem em questões que remontam à própria origem da democracia moderna, suscitando questionamentos acerca de temas fundamentais do modelo de organização política preponderante no hemisfério ocidental. A presente reflexão não visa a examinar com profundidade esses temas. Sobre eles faremos, portanto, apenas un tour d’horizon. Vejamos.
As afirmações afirmativas suscitam, em primeiro lugar, o debate crucial acerca da destinação dos recursos públicos. Recursos, é bom frisar, escassos por definição. O Estado Moderno, como se sabe, resulta do imperativo iluminista de que o conjunto dos recursos da Nação deve ser convertido em prol do interesse de todos, do bem-estar geral da coletividade («The Welfare of the Nation», «Der Wohlstand»). A História e o Direito Comparado aí estão para nos fornecer algumas pistas e nos alertar contra o perigo da inércia neste domínio. Com efeito, é até enfadonho relembrar que a ruptura brutal com o ancien régime se materializou precisamente na abolição dos privilégios que, por lei, eram atribuídos a certas classes de cidadãos. A Democracia que se seguiu, sobretudo na concepção ulterior que deu margem ao surgimento do Estado de bem estar social, tem como um dos seus pilares a tentativa de distribuição equânime e generalizada dos recursos originários do labor coletivo.
Por outro lado, não se deve perder de vista que a amoldagem do atual Estado promovente (uma realidade quase universal) é em grande parte tributária desse rigoroso zelo que as verdadeiras democracias têm para com o correto manuseio de recursos públicos. De fato, questões-chave do constitucionalismo moderno derivam dessa matriz: qual seria o «propósito legítimo» do dispêndio de recursos nacionais? Em que medida se pode questionar a constitucionalidade de certos programas governamentais à luz da exata relação deles extraível entre dispêndio de recursos públicos e incremento do bem-estar coletivo? Até que ponto pode o órgão representante da Nação compelir atores públicos e privados beneficiários desses recursos a se conformarem às regras de eqüidade ínsitas a toda e qualquer democracia? Das múltiplas respostas a essas questões, como se sabe, emergiu o Estado interventivo e regulador e o seu corolário – o Estado de Bem-Estar Social.
Ora, o País que ignora essas noções básicas e reserva a uma pequena minoria os instrumentos de aprimoramento humano aptos a abrir as portas à prosperidade e ao bem-estar individual e coletivo, e, além disso (e também em conseqüência disso) adota, ainda que informalmente, uma política de emprego impregnada de visível e insuportável hierarquização social, pratica nada mais nada menos do que uma nova forma de tirania.
Sim, é disso que se trata. Uma «tirania legal», eis que formalmente ancorada em normas emanadas dos órgãos legislativos e executada por órgãos que supostamente encarnam a soberania popular. No caso brasileiro, não é preciso muito esforço para se convencer disso. Vejamos. No estado atual das coisas, a exclusão social de que os negros são as principais vítimas no Brasil deriva de alguns fatores, dentre os quais figura o esquema perverso de distribuição de recursos públicos em matéria de educação. A Educação é a mais importante dentre as diversas prestações que o indivíduo recebe do Estado. Trata-se, como se sabe, de um bem escasso. O Estado alega não poder fornecê-lo a todos na forma tida como ideal, isto é, em caráter universal e gratuito. No entanto, esse mesmo Estado que se diz impossibilitado de fornecer a todos esse bem indispensável, institucionaliza mecanismos sutis através dos quais proporciona às classes privilegiadas aquilo que alega não poder oferecer à generalidade dos cidadãos. Com efeito, o Estado «financia», com recursos que deveriam ser canalizados a instituições públicas de acesso universal, a educação dos filhos das classes de maior poder aquisitivo, por meio de diversos mecanismos. Isto se dá principalmente através da «renúncia fiscal» de que são beneficiárias as escolas privadas altamente seletivas e excludentes. Certo, não seria justo negar às elites (supostas ou verdadeiras) o direito de matricular os seus filhos em escolas seletivas, onde eles se sintam «chez eux», longe da «populace». O direito de escolher uma educação «diferenciada» para os filhos constitui, a nosso sentir, uma liberdade fundamental a ser garantida pelo Estado. O que é questionável é o compartilhamento do custo desse «luxo» com toda a coletividade: através dos tributos de que essas escolas são isentas, das subvenções diversas que lhes são passadas pelos Governos das três esferas políticas, pelo abatimento das respectivas despesas no montante devido a título de imposto de renda! Esses são alguns dos elementos que compõem a formidável «machine à exclure» que tem nos negros as suas vítimas preferenciais. Essa forma de «exclusão orquestrada e disciplinada pela lei» produz o extraordinário efeito de contrapor, de um lado, a escola pública, republicana, aberta a todos, que deveria oferecer ensino de boa qualidade a pobres e ricos, a uma escola privada, elitista, discriminatória e... largamente financiada com recursos que deveriam beneficiar a todos. Este é o primeiro aspecto da exclusão.
O segundo aspecto ocorre na seleção ao ensino superior. Aí todos já sabem: os papéis se invertem. O ensino superior de qualidade no Brasil está quase que inteiramente nas mãos do Estado. E o que faz o Estado nesse domínio? Institui um mecanismo de seleção que vai justamente propiciar a exclusividade do acesso, sobretudo aos cursos de maior prestígio e aptos a assegurar um bom futuro profissional, àqueles que se beneficiaram do processo de exclusão acima mencionado, isto é, os financeiramente bem aquinhoados. O vestibular, este mecanismo intrinsecamente inútil do ponto de vista pedagógico, não tem outro objetivo que não o de «excluir». Mais precisamente, o de excluir os socialmente fragilizados, de sorte a permitir que os recursos públicos destinados à educação (canalizados tanto para as instituições públicas quanto para as de caráter comercial, como já vimos) sejam gastos não em prol de todos, mas para benefício de poucos. Em suma, trata-se de uma subversão total de um dos princípios informadores do Estado moderno, sintetizado de forma lapidar em feliz expressão cunhada pela Corte Suprema dos EUA: «the power of Congress to authorize expenditure of public moneys for public purposes».
Esta é, pois, a chave para se entender por que existem tão poucos negros nas universidades públicas brasileiras, e quase nenhum nos cursos de maior prestígio e demanda: os recursos públicos são canalizados massivamente para as classes mais afluentes, restando aos pobres (que são majoritariamente negros) «as migalhas» do sistema.
Este o aspecto perverso do sistema educacional brasileiro. Os negros são suas principais vítimas. E este é, sem dúvida, um problema constitucional de primeira grandeza, pois nos remete à noção primitiva de democracia, a saber: em que, por quem e em benefício de quem são despendidos os recursos financeiros da Nação.
Agir «afirmativamente» significa ter consciência desses problemas e tomar decisões coerentes com o imperativo indeclinável de remediá-los. Além da vontade política, que é fundamental, é preciso colocar de lado o formalismo típico da nossa praxis jurídico-institucional e entender que a questão é de vital importância para a legítima aspiração de todos de que um dia o País se subtraia ao opróbrio internacional a que sempre esteve confinado, e ocupe o espaço, a posição e o respeito que a sua história, o seu povo, suas realizações e o seu peso político e econômico recomendam.
No plano estritamente jurídico (que se subordina, a nosso sentir, à tomada de consciência assinalada nas linhas anteriores), o Direito Constitucional vigente no Brasil, é perfeitamente compatível com o princípio da ação afirmativa. Melhor dizendo, o Direito brasileiro já contempla algumas modalidades de ação afirmativa, inclusive em sede constitucional.
A questão se coloca, é claro, no terreno do princípio constitucional da igualdade. Este princípio, porém, comporta várias vertentes.
3.3 Igualdade formal ou procedimental x Igualdade de resultados ou material – O cerne da questão reside em saber se na implementação do princípio constitucional da igualdade o Estado deve assegurar apenas uma certa “neutralidade processual” (procedural due process of law) ou, ao contrário, se sua ação deve se encaminhar de preferência para a realização de uma “igualdade de resultados” ou igualdade material. A teoria constitucional clássica, herdeira do pensamento de Locke, Rousseau e Montesquieu, é responsável pelo florescimento de uma concepção meramente formal de igualdade – a chamada igualdade perante a lei. Trata-se em realidade de uma igualdade meramente «processual» («process-regarding equality»). As notórias insuficiências dessa concepção de igualdade conduziram paulatinamente à adoção de uma nova postura, calcada não mais nos meios que se outorgam aos indivíduos num mercado competitivo, mas nos resultados efetivos que eles podem alcançar. Resumindo singelamente a questão, diríamos que as nações que historicamente se apegaram ao conceito de igualdade formal são aquelas onde se verificam os mais gritantes índices de injustiça social, eis que, em última análise, fundamentar toda e qualquer política governamental de combate à desigualdade social na garantia de que todos terão acesso aos mesmos «instrumentos» de combate corresponde, na prática, a assegurar a perpetuação da desigualdade. Isto porque essa «opção processual» não leva em conta aspectos importantes que antecedem à entrada dos indivíduos no mercado competitivo. Já a chamada «igualdade de resultados» tem como nota característica exatamente a preocupação com os fatores «externos» à luta competitiva – tais como classe ou origem social, natureza da educação recebida -, que têm inegável impacto sobre o seu resultado.
Vários dispositivos da Constituição brasileira de 1988 revelam o repúdio do constituinte pela igualdade «processual» e sua opção pela concepção de igualdade dita «material» ou «de resultados».
Assim, por exemplo, os artigos 3º, 7-XX.º, 37-VIII e 170 dispõem:

«Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;
(...)
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais».
«Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
(...)
VII – redução das desigualdades regionais e sociais(...)
IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País».
«Art. 7º - São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
(...)
XX – Proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei;»
«Art. 37 (...)
VIII – A lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão».

É patente, pois, a maior preocupação do legislador constituinte originário com os direitos e garantias fundamentais, bem como com a questão da igualdade, especialmente no que pertine à implementação da igualdade substancial. Flavia Piovesan assinala como símbolo dessa preocupação «(a) ‘topografia’ de destaque que recebe este grupo de direitos (fundamentais) e deveres em relação às Constituições anteriores; (b) a elevação, à ‘cláusula pétrea’, dos direitos e garantias individuais (art. 60, § 4º, inc, IV); (c) o aumento dos bens merecedores de tutela e da titularidade de novos sujeitos de direito (‘coletivo’), tudo comparativamente às Cartas antecedentes.” Some-se a isso a previsão expressa, em sede constitucional, da igualdade entre homens e mulheres (art. 5º, I) e, em alguns casos, da permissão expressa para utilização das ações afirmativas, com o intuito de implementar a igualdade, tais como o artigo 37, VIII (reserva de cargos e empregos públicos para pessoas portadoras de deficiência) e art. 7º, XX (“proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei”)

Vê-se, portanto, que a Constiuição Brasileira de 1988 não se limita a proibir a discriminação, afirmando a igualdade, mas permite, também, a utilização de medidas que efetivamente implementem a igualdade material. Como bem sustentou a ilustre Professora de Direito Constitucional da PUC de Minas Gerais, Carmen Lúcia Antunes Rocha, «a Constituição Brasileira de 1988 tem, no seu preâmbulo, uma declaração que apresenta um momento novo no constitucionalismo pátrio: a idéia de que não se tem a democracia social, a justiça social, mas que o Direito foi ali elaborado para que se chegue a tê-los(...)O princípio da igualdade resplandece sobre quase todos os outros acolhidos como pilastras do edifício normativo fundamental alicerçado. É guia não apenas de regras, mas de quase todos os outros princípios que informam e conformam o modelo constitucional positivado, sendo guiado apenas por um, ao qual se dá a servir: o da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição da República» . E prossegue a ilustre jurista, fazendo alusão expressa aos dispositivos constitucionais acima transcritos: «Verifica-se que todos os verbos utilizados na expressão normativa – construir, erradicar, reduzir, promover – são de ação, vale dizer, designam um comportamento ativo. O que se tem, pois, é que os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil são definidos em termos de obrigações transformadoras do quadro social e político retratado pelo constituinte quando da elaboração do texto constitucional. E todos os objetivos contidos, especialmente, nos três incisos acima transcritos do art. 3º, da Lei Fundamental da República, traduzem exatamente mudança para se chegar à igualdade. Em outro dizer, a expressão normativa constitucional significa que a Constituição determina uma mudança do que se tem em termos de condições sociais, políticas, econômicas e regionais, exatamente para se alcançar a realização do valor supremo a fundamentar o Estado Democrático de Direito constituído. Se a igualdade jurídica fosse apenas a vedação de tratamentos discriminatórios, o princípio seria absolutamente insuficiente para possibilitar a realização dos objetivos fundamentais da República constitucionalmente definidos. Pois daqui para a frente, nas novas leis e comportamentos regulados pelo Direito, apenas seriam impedidas manifestações de preconceitos ou cometimentos discriminatórios. Mas como mudar, então, tudo o que se tem e se sedimentou na história política, social e econômica nacional? Somente a ação afirmativa, vale dizer, a atuação transformadora, igualadora pelo e segundo o Direito possibilita a verdade do princípio da igualdade, para se chegar à igualdade que a Constituição Brasileira garante como direito fundamental de todos. O art. 3º traz uma declaração, uma afirmação e uma determinação em seus dizeres. Declara-se, ali, implícita, mas claramente, que a República Federativa do Brasil não é livre, porque não se organiza segundo a universalidade desse pressuposto fundamental para o exercício dos direitos, pelo que, não dispondo todos de condições para o exercício de sua liberdade, não pode ser justa. Não é justa porque plena de desigualdades antijurídicas e deploráveis para abrigar o mínimo de condições dignas para todos. E não é solidária porque fundada em preconceitos de toda sorte(...)O inciso IV, do mesmo art. 3º, é mais claro e afinado, até mesmo no verbo utilizado, com a ação afirmativa. Por ele se tem ser um dos objetivos fundamentais promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Verifica-se, então, que não se repetiu apenas o mesmo modelo principiológico que adotaram constituintes anteriormente atuantes no país. Aqui se determina agora uma ação afirmativa: aquela pela qual se promova o bem de todos, sem preconceitos (de) quaisquer...formas de discriminação. Significa que universaliza-se a igualdade e promove-se a igualação: somente com uma conduta ativa, positiva, afirmativa, é que se pode ter a transformação social buscada como objetivo fundamental da República. Se fosse apenas para manter o que se tem, sem figurar o passado ou atentar à história, teria sido suficiente, mais ainda, teria sido necessário, tecnicamente, que apenas se estabelecesse ser objetivo manter a igualdade sem preconceitos etc. Não foi o que pretendeu a Constituição de 1988. Por ela se buscou a mudança do conceito, do conteúdo, da essência e da aplicação do princípio da igualdade jurídica, com relevo dado à sua imprescindibilidade para a transformação da sociedade, a fim de se chegar a seu modelo livre, justa e solidária. Com promoção de mudanças, com a adoção de condutas ativas, com a construção de novo figurino sócio-político é que se movimenta no sentido de se recuperar o que de equivocado antes se fez».
Esta, portanto, é a concepção moderna e dinâmica do princípio constitucional da igualdade, a que conclama o Estado a deixar de lado a passividade, a renunciar à sua suposta neutralidade e a adotar um comportamento ativo, positivo, afirmativo, quase militante, na busca da concretização da igualdade substancial.
Note-se, mais uma vez, que este tipo de comportamento estatal não é estranho ao Direito brasileiro pós-Constituição de 1988. Ao contrário, a imprescindibilidade de medidas corretivas e redistributivas visando a mitigar a agudeza da nossa «questão social» já foi reconhecida em sede normativa, através de leis vocacionadas a combater os efeitos nefastos de certas formas de discriminação. Nesse sentido, é importante frisar, o Direito brasileiro já contempla algumas modalidades de ação afirmativa. Não obstante tratar-se de experiências ainda tímidas quanto ao seu alcance e amplitude, o importante a ser destacado é o fato da acolhida desse instituto jurídico em nosso Direito.

Ação Afirmativa e relações de gênero

A discriminação de gênero, fruto de uma longa tradição patriarcal que não conhece limites geográficos tampouco culturais, é do conhecimento de todos os brasileiros. Entre nós, o status de inferioridade da mulher em relação ao homem foi por muito tempo considerado como algo qui va de soi, normal, decorrente da própria «natureza das coisas». A tal ponto que essa inferioridade era materializada expressamente na nossa legislação civil.
A Constituição de 1988 (art. 5º, I) não apenas aboliu essa discriminação chancelada pelas leis, mas também, através dos diversos dispositivos antidiscriminatórios já mencionados, permitiu que se buscassem mecanismos aptos a promover a igualdade entre homens e mulheres. Assim, com vistas a minimizar essa flagrante desigualdade existente em detrimento das mulheres, nasceu, entre nós, a modalidade de ação afirmativa hoje corporificada nas leis 9100/95 e 9504/97, que estabeleceram cotas mínimas de candidatas mulheres para as eleições .
As mencionadas leis representam, em primeiro lugar, o reconhecimento pelo Estado de um fato inegável: a existência de discriminação contra as brasileiras, cujo resultado mais visível é a exasperante sub-representação feminina em um dos setores-chave da vida nacional – o processo político. Com efeito, o legislador ordinário, consciente de que em toda a história política do país é desprezível a participação feminina, resolveu remediar a situação através de um corretivo que nada mais é do que uma das muitas técnicas através das quais, em direito comparado, são concebidas e implementadas as ações afirmativas: o mecanismo das cotas.

As Leis 9100/95 e 9504/97 tiveram a virtude de lançar o debate em torno das ações afirmativas e, sobretudo, de tornar evidente a necessidade premente de se implementar de maneira efetiva a isonomia em matéria de gênero em nosso país. As cotas de candidaturas femininas constituem apenas o primeiro passo nesse sentido. Se é certo que é preciso tempo para se fazer avaliações mais seguras acerca da sua eficácia como medida de transformação social, não há dúvida de que já se anunciam alguns resultadores alvissareiros, como o incremento significativo, em termos globais, da participação feminina nas instâncias de poder .
Assim, as mencionadas leis consagram a recepção definitiva pelo Direito brasileiro do princípio da ação afirmativa. Ainda que limitada a uma forma específica de discriminação, o fato é que essa política social ingressou nos «moeurs politiques» da Nação, uma vez que foi aplicada sem contestação em dois pleitos eleitorais.

Ação Afirmativa e Portadores de Deficiência

O mesmo princípio também vem sendo adotado pela legislação que visa a proteger os direitos das pessoas portadoras de deficiência física.
Com efeito, a Constituição Brasileira, em seu artigo 37, VIII, prevê expressamente a reservas de vagas para deficientes físicos na administração pública. Neste caso, a permissão constitucional para adoção de ações afirmativas em relação aos portadores de deficiência física é expressa. Daí a iniciativa do legislador ordinário, materializada nas leis 7.835/89 e 8.112/90, que regulamentaram o mencionado dispositivo constitucional. De fato, a Lei 8112/90 (Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos Civis da União) estabelece em seu art. 5º, § 2º que “às pessoas portadoras de deficiência é assegurado o direito de se inscrever em concurso público para provimento de cargo cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que são portadoras; para tais pessoas serão reservadas até 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas no concurso.”
Comentando o dispositivo transcrito, Mônica de Melo , com muita propriedade, afirma, verbis:

“Desta forma, qualquer concurso público que se destine a preenchimento de vagas para o serviço público federal deverá conter em seu edital a previsão das vagas reservadas para os portadores de deficiência. Note-se que o artigo fala em até 20% (vinte por cento) das vagas, o que possibilita uma reserva menor e o outro requisito legal é que as atribuições a serem desempenhadas sejam compatíveis com a deficiência apresentada. Há entendimentos no sentido de que 10% (dez por cento) das vagas seria um percentual razoável, à medida que no Brasil haveria 10% de pessoas portadoras de deficiência, segundo dados da Organização Mundial de Saúde.”

Esta outra modalidade de «discriminação positiva» tem recebido o beneplácito do Poder Judiciário. Com efeito, tanto o Supremo Tribunal Federal quanto o Superior Tribunal de Justiça já tiveram oportunidade de se manifestar favoravelmente sobre o tema, verbis:

“Ementa:
Sendo o art. 37, VII, da CF, norma de eficácia contida, surgiu o art. 5º, § 2º, do novel Estatuto dos Servidores Públicos Federais, a toda evidência, para regulamentar o citado dispositivo constitucional, a fim de lhe proporcionar a plenitude eficacial. Verifica-se, com toda a facilidade, que o dispositvo da lei ordinária definiu os contornos do comando constitucional, assegurando o direito aos portadores de deficiência de se inscreverem em concurso público, ditando que os cargos providos tenham atribuições compatíveis com a deficiência de que são portadores e, finalmente, estabelecendo um percentual máximo de vagas a serem a eles reservadas. Dentro desses parâmetros, fica o administrador com plena liberdade para regular o acesso dos deficientes aprovados no concurso para provimento de cargos públicos, não cabendo prevalecer diante da garantia constitucional, o alijamento do deficiente por não ter logrado classificação, muito menos por recusar o decisum afrontado que não tenha a norma constitucional sido regulamentada pelo dispositivo da lei ordinária, tão-só, por considerar não ter ela definido critérios suficientes. Recurso provido com a concessão da segurança, a fim de que seja oferecida à recorrente vaga, dentro do percentual que for fixado para os deficientes, obedecida, entre os deficientes aprovados, a ordem de classificiação se for o caso.”
(RMS 3.113-6/DF, 6ª T. j. 06.12.1994, cujo Relator foi o Min. Pedro Acioli)

“Concurso Público e Vaga para Deficientes
Por ofensa ao art. 37, VIII, da CF (“a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão;”), o Tribunal deu provimento a recurso extraordinário para reformar acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais que negara a portadora de deficiência o direito de ter assegurada uma vaga em concurso público ante a impossibilidade aritmética de se destinar, dentre as 8 vagas existentes, a reserva de 5% aos portadores de deficiência física (LC 9/92 do Município de Divinópolis). O Tribunal entendeu que, na hipótese de a divisão resultar em número fracionado — não importando que a fração seja inferior a meio —, impõe-se o arredondamento para cima.
RE 227.299-MG, rel. Min. Ilmar Galvão, 14.6.2000. (RE-227299)”



Como se vê, a destinação de um percentual de vagas no serviço público aos deficientes físicos não viola o princípio da isonomia. Em primeiro lugar, porque a deficiência física de que essas pessoas são portadoras traduz-se em uma situação de nítida desvantagem em seu detrimento, fato este que deve ser devidamente levado em conta pelo Estado, no cumprimento do seu dever de implementar a igualdade material.
Em segundo, porque os deficientes físicos se submetem aos concursos públicos, devendo necessariamente lograr aprovação. A reserva de vagas, portanto, representa uma dentre as diversas técnicas de implementação da igualdade material, consagração do princípio bíblico segundo o qual deve-se tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais.
Pois bem. Se esse princípio é plenamente aceitável (inclusive na esfera jurisdicional, como vimos) como mecanismo de combate a uma das múltiplas formas de discriminação, da mesma forma ele haverá de ser aceito para combater aquela que é a mais arraigada forma de discriminação entre nós, a que tem maior impacto social, econômico e cultural - a discriminação de cunho racial. Isto porque os princípios constitucionais mencionados anteriormente são vocacionados a combater toda e qualquer disfunção social originária dos preconceitos e discriminações incrustados no imaginário coletivo, vale dizer, os preconceitos e discriminação de fundo histórico. Não se trata de princípios de aplicação seletiva, bons para curar certos males, mas inadaptados a remediar outros!

Ação Afirmativa e Direito Internacional dos Direitos Humanos

O problema aqui tratado, como se sabe, transcende o Direito interno brasileiro e envolve o chamado Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Com efeito, não obstante as divergências doutrinárias e jurisprudenciais que pairam sobre o assunto, não podemos deixar de consignar a contribuição trazida à matéria por uma avançada inteligência do artigo 5º da Constituição de 1988, que em seus parágrafos 1º e 2º traz disposições importantíssimas para a efetiva implementação dos direitos e garantias fundamentais. Com efeito, o parágrafo 1º estabelece que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata no país. Já o parágrafo 2º dispõe que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.”
Como resultado da conjugação do § 1º com o § 2º do artigo 5º do texto constitucional, uma interpretação sistemática da Constituição nos conduz à constatação de que estamos diante de normas da mais alta relevância para a proteção dos direitos humanos (e, consequentemente, dos direitos das minorias) no Brasil, quais sejam: os tratados internacionais de direitos humanos, que, segundo o dispositivo citado, têm aplicação imediata no território brasileiro, necessitando apenas de ratificação.
Com efeito, esse é o ensinamento que colhemos em dois dos nossos mais eruditos scholars, especialistas na matéria, os Professores Antônio Augusto Cançado Trindade e Celso de Albuquerque Mello, verbis:

“O disposto no art. 5º, § 2º da Constituição Brasileira de 1988 se insere na nova tendência de Constituições latino-americanas recentes de conceder um tratamento especial ou diferenciado também no plano do direito interno aos direitos e garantias individuais internacionalmente consagrados. A especificidade e o caráter especial dos tratados de proteção internacional dos direitos humanos encontram-se, com efeito, reconhecidos e sancionados pela Constituição Brasileira de 1988: se, para os tratados internacionais em geral, se tem exigido a intermediação pelo poder Legislativo de ato com força de lei de modo a outorgar a suas disposições vigência ou obrigatoriedade no plano do ordenamento jurídico interno, distintamente no caso dos tratados de proteção internacional dos direitos humanos em que o Brasil é parte os direitos fundamentais neles garantidos passam, consoante os artigos 5º, § 2º e 5º, § 1º, da Constituição Brasileira de 1988, a integrar o elenco dos direitos constitucionalmente consagrados direta e imediatamente exigíveis no plano do ordenamento jurídico interno” .

«A Constituição de 1988 no § 2 do art. 5º constitucionalizou as normas de direitos humanos consagradas nos tratados. Significando isto que as referidas normas são normas constitucionais, como diz Flávia Piovesan citada acima. Considero esta posição já como um grande avanço. Contudo sou ainda mais radical no sentido de que a norma internacional prevalece sobre a norma constitucional, mesmo naquele caso em que uma norma constitucional posterior tente revogar uma norma internacional constitucionalizada. A nossa posição é a que está consagrada na jurisprudência e tratado internacional europeu de que se deve aplicar a norma mais benéfica ao ser humano, seja ela interna ou internacional. A tese de Flávia Piovesan tem a grande vantagem de evitar que o Supremo Tribunal Federal venha a julgar a constitucionalidade dos tratados internacionais».


Assim, à luz desta respeitável doutrina, pode-se concluir que o Direito Constitucional brasileiro abriga, não somente o princípio e as modalidades implícitas e explícitas de ação afirmativa a que já fizemos alusão, mas também as que emanam dos tratados internacionais de direitos humanos assinados pelo nosso país.
Com efeito, o Brasil é signatário dos principais instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, em especial a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial e a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, os quais permitem expressamente a utilização das medidas positivas tendentes a mitigar os efeitos da discriminação.
De fato, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1968), ratificada pelo Brasil em 27 de março de 1968, dispõe em seu artigo 1º, nº 4, verbis:

«Art. 1º- 4. Não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar o progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contanto que tais medidas não conduzam, em conseqüência, à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sido alcançados os seus objetivos.»


Dispositivo de igual teor também figura no artigo 4º da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (1979), ratificada pelo Brasil em 1984, com reservas na área de direito de família, reservas estas que foram retiradas em 1994, verbis:

“Artigo 4º - 1. A adoção pelos Estados-partes de medidas especiais de caráter temporário destinadas a acelerar a igualdade de fato entre o homem e a mulher não se considerará discriminação na forma definida nesta Convenção, mas de nenhuma maneira implicará, como conseqüência, a manutenção de normas desiguais ou separadas; essas medidas cessarão quando os objetivos de igualdade de oportunidade e tratamento houverem sido alcançados.”



É, portanto, amplo e diversificado o respaldo jurídico às medidas afirmativas que o Estado brasileiro resolva empreender no sentido de resolver esse que talvez seja o mais grave de todos os nossos problemas sociais – o alijamento e a marginalização do negro na sociedade brasileira. A questão se situa, primeiramente, na esfera da Alta Política. No plano jurídico, não há dúvidas quanto à sua viabilidade, como se tentou demonstrar. Resta, tão somente, escolher os critérios, as modalidades e as técnicas adaptáveis à nossa realidade, cercando-as das devidas cautelas e salvaguardas.

4- Critérios, modalidades e limites das Ações Afirmativas

Ao debruçar-se sobre o tema, o ilustre Professor Joaquim Falcão sustentou que “se, por um lado, é tranqüila a constatação de que o princípio da igualdade formal é relativo e convive com diferenciações, nem todas as diferenciações são aceitas. A dificuldade é determinar os critérios a partir dos quais uma diferenciação é aceita como constitucional” . O autor apresenta solução ao problema, afirmando que a justificação do estabelecimento da diferença seria uma condição sine qua non para a constitucionalidade da diferenciação, a fim de evitar a arbitrariedade. Esta justificação deve ter um conteúdo, baseado na razoabilidade, ou seja, num fundamento razoável para a diferenciação; na racionalidade, no sentido de que a motivação deve ser objetiva, racional e suficiente; e na proporcionalidade, isto é, que a diferenciação seja um reajuste de situações desiguais. Aliado a isto, a legislação infraconstitucional deve respeitar três critérios concomitantes para que atenda ao princípio da igualdade material: a diferenciação deve (a) decorrer de um comando-dever constitucional, no sentido de que deve obediência a uma norma programática que determina a redução das desigualdades sociais; (b) ser específica, estabelecendo claramente aquelas situações ou indivíduos que serão “beneficiados” com a diferenciação; e (c) ser eficiente, ou seja, é necessária a existência de um nexo causal entre a prioridade legal concedida e a igualdade socioeconômica pretendida .
Sem dúvida, os critérios acima estabelecidos são um ótimo ponto de partida para o estabelecimento de ações afirmativas no Brasil. Porém, falta ao Direito brasileiro um maior conhecimento das modalidades e das técnicas que podem ser utilizadas na implementação de ações afirmativas. Entre nós, fala-se quase exclusivamente do sistema de cotas, mas esse é um sistema que, a não ser que venha amarrado a um outro critério inquestionavelmente objetivo , deve ser objeto de uma utilização marcadamente marginal.
Com efeito, o essencial é que o Estado reconheça oficialmente a existência da discriminação racial, dos seus efeitos e das suas vítimas, e tome a decisão política de enfrentá-la, transformando esse combate em uma política de Estado. Uma tal atitude teria o saudável efeito de subtrair o Estado brasileiro da ambigüidade que o caracteriza na matéria: a de admitir que existe um problema racial no país e ao mesmo tempo furtar-se a tomar medidas sérias no sentido minorar os efeitos sociais dele decorrentes.
Em segundo lugar, é preciso ter clara a idéia de que a solução ao problema racial não deve vir unicamente do Estado. Certo, cabe ao Estado o importante papel de impulsão, mas ele não deve ser o único ator nessa matéria. Cabe-lhe traçar as diretrizes gerais, o quadro jurídico à luz do qual os atores sociais poderão agir. Incumbe-lhe remover os fatores de discriminação de ordem estrutural, isto é, aqueles chancelados pelas próprias normas legais vigentes no país, como ficou demonstrado acima. Mas as políticas afirmativas não devem se limitar à esfera pública. Ao contrário, devem envolver as universidades, públicas e privadas, as empresas, os governos estaduais, as municipalidades, as organizações governamentais, o Poder Judiciário etc.
No que pertine às técnicas de implementação das ações afirmativas, podem ser utilizados, além do sistema de cotas, o método do estabelecimento de preferências, o sistema de bônus e os incentivos fiscais (como instrumento de motivação do setor privado). De crucial importância é o uso do poder fiscal, não como mecanismo de aprofundamento da exclusão, como é da nossa tradição, mas como instrumento de dissuasão da discriminação e de emulação de comportamentos (públicos e privados) voltados à erradicação dos efeitos da discriminação de cunho histórico.
Noutras palavras, ação afirmativa não se confunde nem se limita às cotas. Confira-se, sobre o tema, as judiciosas considerações feitas por Wania Sant’Anna e Marcello Paixão, no interessante trabalho intitulado «Muito Além da Senzala: Ação Afirmativa no Brasil», verbis:
“Segundo Huntley, "ação afirmativa é um conceito que inclui diferentes tipos de estratégias e práticas. Todas essas estratégias e práticas estão destinadas a atender problemas históricos e atuais que se constatam nos Estados Unidos em relação às mulheres, aos afro-americanos e a outros grupos que têm sido alvo de discriminação e, conseqüentemente, aos quais se tem negado a oportunidade de desenvolver plenamente o seu talento, de participar em todas as esferas da sociedade americana. (...) Ação afirmativa é um conceito que, usualmente, requer o que nós chamamos metas e cronogramas. Metas são um padrão desejado pelo qual se mede o progresso e não se confunde com cotas. Opositores da ação afirmativa nos Estados Unidos freqüentemente caracterizam metas como sendo cotas, sugerindo que elas são inflexíveis, absolutas, que as pessoas são obrigadas a atingi-las".
A política de ação afirmativa não exige, necessariamente, o estabelecimento de um percentual de vagas a ser preenchido por um dado grupo da população. Entre as estratégias previstas, incluem-se mecanismos que estimulem as empresas a buscarem pessoas de outro gênero e de grupos étnicos e raciais específicos, seja para compor seus quadros, seja para fins de promoção ou qualificação profissional. Busca-se, também, a adequação do elenco de profissionais às realidades verificadas na região de operação da empresa. Essas medidas estimulam as unidades empresariais a demonstrar sua preocupação com a diversidade humana de seus quadros.
Isto não significa que uma dada empresa deva ter um percentual fixo de empregados negros, por exemplo, mas, sim, que esta empresa está demonstrando a preocupação em criar formas de acesso ao emprego e ascensão profissional para as pessoas não ligadas aos grupos tradicionalmente hegemônicos em determinadas funções (as mais qualificadas e remuneradas) e cargos (os hierarquicamente superiores). A ação afirmativa parte do reconhecimento de que a competência para exercer funções de responsabilidade não é exclusiva de um determinado grupo étnico, racial ou de gênero. Também considera que os fatores que impedem a ascensão social de determinados grupos estão imbricados numa complexa rede de motivações, explícita ou implicitamente, preconceituosas.”

Por fim, no que diz respeito às cautelas a serem observadas, valho-me mais uma vez dos ensinamentos da Prof. Carmem Lúcia Antunes Rocha , verbis:

“É importante salientar que não se quer verem produzidas novas discriminações com a ação afirmativa, agora em desfavor das maiorias, que, sem serem marginalizadas historicamente, perdem espaços que antes detinham face aos membros dos grupos afirmados pelo princípio igualador no Direito. Para se evitar que o extremo oposto sobreviesse é que os planos e programas de ação afirmativa adotados nos Estados Unidos e em outros Estados, primaram sempre pela fixação de percentuais mínimos garantidores da presença das minorias que por eles se buscavam igualar, com o objetivo de se romperem preconceitos contra elas ou pelo menos propiciarem-se condições para a sua superação em face da convivência juridicamente obrigada. Por ela, a maioria teria que se acostumar a trabalhar, a estudar, a se divertir etc. com os negros, as mulheres, os judeus, os orientais, os velhos etc., habituando-se a vê-los produzir, viver, sem inferioridade genética determinada pelas suas características pessoais resultantes do grupo a que pertencessem. Os planos e programas das entidades públicas e particulares de ação afirmativa deixam sempre à disputa livre da maioria a maior parcela de vagas em escolas, empregos, em locais de lazer etc., como forma de garantia democrática do exercício da liberdade pessoal e da realização do princípio da não discriminação (contido no princípio constitucional da igualdade jurídica) pela própria sociedade.”




Rio de Janeiro, 10 Novembro de 2000.



Prof. Joaquim B. Barbosa Gomes

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