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domingo, 31 de janeiro de 2010

A Constitucionalidade da Discriminação Positiva



por Fernando Trindade
1. Discute-se sobre a constitucionalidade da chamada discriminação positiva ou, como preferem alguns, ação afirmativa.
2. De nossa parte, estamos convicto de que a Constituição de 05 de outubro de 1988, não só não veda a adoção de medidas nesse sentido, mas, antes, favorece.
3. Com efeito, já no seu preâmbulo, a nossa Lei Maior estabelece como objetivo da Assembléia Nacional Constituinte a instituição de um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais (...) a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (...).
4. Note-se que o legislador constituinte não afirmou que, por ocasião da promulgação do Estatuto Magno, tal Estado já exista. Não. Ele está posto como perspectiva, como objetivo a ser alcançado pela aplicação da Constituição.
5. Por outro lado, o art. 1º da Lei Maior estabelece como fundamentos da República Federativa do Brasil a cidadania (inciso II) e a dignidade da pessoa humana (inciso III).
6. Outrossim, o art. 3º estatui que a República Federativa do Brasil tem como objetivos fundamentais: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. (Grifo nosso)
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7. Neste ponto, devemos recordar lição de CARMEM LÚCIA ANTUNES ROCHA quando a ilustre Professora registra que os verbos utilizados pelo legislador constituinte para definir os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil são verbos que evocam ação: construir, erradicar, reduzir, promover etc. (Cf. Ação afirmativa – O conteúdo democrático do Princípio da Igualdade Jurídica, Revista Trimestral de Direito Público, 15/1996, 92).
8. Desse modo, para que os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil sejam alcançados, reclamam comportamentos ativos ou, dizendo de outro modo, pedem ações afirmativas.
9. E ações afirmativas da parte de quem? Da sociedade e do Estado (v.g. art. 194, caput).
10. De outra parte, o art. 5º, caput, firma que todos são iguais perante a lei, garantindo, ademais, aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à igualdade.
11. Note-se que esse dispositivo prevê dois níveis do princípio da igualdade. O primeiro deles, que abre o dispositivo, estabelece o direito à igualdade formal: Todos são iguais perante a lei (...). Já o segundo nível do princípio da igualdade contido no art. 5º da Lei Maior está na segunda parte do preceptivo e estabelece o direito à igualdade material. Assim, Todos são iguais perante a lei (...) garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito (...) à igualdade (...).
12. Dessa forma, o primeiro nível definiria uma dimensão, por assim dizer, passiva, do princípio da igualdade: a lei será aplicada igualmente a todos. O segundo nível traria uma dimensão ativa do princípio da igualdade e, segundo entendemos, seria pressuposto da legitimidade do primeiro: o Estado garante a todos o direito à igualdade.
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13. E, a propósito do princípio da isonomia, ensina CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO:
“Em verdade, o que se tem de indagar para concluir se uma norma desatende a igualdade ou se convive bem com ela é o seguinte: se o tratamento diverso outorgado a uns for ‘justificável’, por existir uma ‘correlação lógica’ entre o ‘fator de discrímen’ tomado em conta e o regramento que se lhe deu, a norma ou a conduta são compatíveis com o princípio da igualdade, se, pelo contrário, inexistir esta relação de congruência lógica ou – o que ainda seria mais flagrante – se nem ao menos houvesse um fator de discrímen identificável, a norma ou a conduta serão incompatíveis com o princípio da igualdade.” (Cf. Princípio da Isonomia: Desequiparações Proibidas e Desequiparações Permitidas, Revista Trimestral de Direito Público, 1/1993, p. 81/82).
E mais:
“...sempre que a correlação lógica entre o fator de discrímen e o correspondente tratamento encartar-se na mesma linha de valores reconhecidos pela Constituição, a disparidade professada pela norma exibir-se-á como esplendorosamente ajustada ao preceito isonômico. Será fácil, pois, reconhecer-lhe a presença em lei que, ‘exempli gratia’, isente do pagamento de imposto de importação automóvel hidramático para uso de paraplégico.” (Cf. ob. cit, p. 83).
14. Por seu turno, esclarece FÁBIO KONDER COMPARATO:
“Para se entender o verdadeiro sentido da lei, no enunciado do princípio da isonomia, é preciso recolocá-lo no quadro intelectual e político do século XVIII europeu, onde foi declarado, não se podendo, todavia, esquecer as suas matrizes históricas, situadas na experiência democrática ateniense.
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Para Rousseau, o fundamento legitimador da sociedade política é o pacto de submissão de todos às deliberações que sejam do interesse comum, ou seja, a supremacia da vontade geral sobre as vontades particulares. A vontade geral manifesta-se por meio de leis e só pode exprimir-se dessa maneira. A lei não é, pois, uma deliberação coletiva qualquer, mas somente aquela que ‘parte de todos para se aplicar a todos’.
Bem se vê, portanto, que o caráter geral da lei supõe uma igualdade absoluta dos cidadãos, tanto em sua votação, quanto em sua destinação.” (Cf. Igualdade, Desigualdades, Revista Trimestral de Direito Público, 1/1993, p. 71).
15. Assim, o igual tratamento pela lei, para ser legítimo, pressupõe uma igualdade de fato preexistente.
16. A propósito, o Presidente LYNDON JOHNSON, ao pronunciar o discurso que inaugurou a ação afirmativa nos Estados Unidos, em 4 de junho de 1965, na HOWARD UNIVERSITY, indagou se todos ali eram livres para competir com os demais membros da mesma sociedade em igualdade de condições. A resposta – óbvia – era que não.
17. De outra parte, registre-se que, como Constituição analítica que é, a nossa Carta, para além dos princípios, previu, no seu texto, medidas de ação afirmativa. Nesse sentido, o seu art. 37, VIII, dispôs que a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de admissão dessas pessoas.
18. É assim que a Lei n.º 8.112/90, que estabeleceu o regime jurídico único para os servidores da União, contém, no § 2º do seu art. 5º, o seguinte preceptivo:
“Art. 5º .................................................................
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§ 2º Às pessoas portadoras de deficiência é assegurado o direito de se inscrever em concurso público para provimento de cargo cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que são portadoras; para tais pessoas serão reservadas até 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas no concurso.”
19. Perceba-se que o legislador constituinte previu a reserva de percentual de cargos públicos para as pessoas portadoras de deficiência se utilizando de medida concreta usual no direito internacional para concretizar medidas de ação afirmativa.
20. Aliás, CARMEM LÚCIA ANTUNES ROCHA explica que a fixação de percentuais mínimos para favorecer minorias é medida que busca manter a ação afirmativa dentro dos limites da razoabilidade:
“Para se evitar que o extremo oposto sobreviesse é que os planos e programas de ação afirmativa, nos Estados Unidos e em outros Estados, primaram sempre pela fixação de percentuais mínimos garantidores da presença das minorias que por eles se buscavam igualar.” (Cf. ob. cit. p.88).
21. Por outro lado, é também a Professora CARMEM LÚCIA ANTUNES ROCHA quem recorda que o art. 170 do Estatuto Magno, no seu texto original, arrolava entre os princípios da ordem econômica o tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte (art. 170, IX), o que configura ação afirmativa em prol dessa espécie de empresa (Cf. CARMEM LÚCIA ANTUNES ROCHA, ob. cit., p. 95).
22. O pressuposto para essa desigualação parece-nos ser a convicção de que as empresas favorecidas devem ter proteção estatal para que não sejam inviabilizadas pelo princípio da livre concorrência, também albergado pela Constituição (art. 170, IV).
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23. Registre-se que esse inciso foi alterado pela Emenda Constitucional n.º 6, de 1995, que lhe deu a redação seguinte: tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.
24. Perceba-se que a emenda constitucional não modificou o normativo quanto a ação afirmativa nele contida, o que indica que o constituinte reformador, tanto quanto o originário, acolheu a regra da desigualação para igualar.
25. Adende-se, ainda, que o § 2º do art. 5º da Lei Maior preceitua que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
26. Da perspectiva da nossa legislação infraconstitucional, é ainda CARMEM LÚCIA ANTUNES ROCHA quem recorda ação afirmativa contida na Lei nº 8.666/93 (Lei das Licitações e Contratos da Administração Pública, ob. cit., pp. 96/97).
27. Ela está contida no inciso XX do art. 24 dessa lei e estatui que é dispensável a licitação na contratação de associação de portadores de deficiência física, sem fins lucrativos e de comprovada idoneidade, por órgãos ou entidades da Administração Pública, para a prestação de serviços ou fornecimento de mão-de-obra, desde que o preço contratado seja compatível com o praticado no mercado.
28. Cabe aqui recordar que a primeira ordem executiva federal que concretizou a ação afirmativa nos Estados Unidos, em 1965, determinava que as empresas empreiteiras contratadas pelas entidades públicas ficavam obrigadas a uma ‘ação afirmativa’ para aumentar a contratação dos grupos minoritários da população (Cf. CARMEM LÚCIA ANTUNES ROCHA, ob. cit., p. 87).
29. Por outro lado, a legislação eleitoral vem adotando medida de ação afirmativa em favor do sexo feminino. Nesse sentido, a Lei nº 9.100/95,
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que regulamentou as eleições municipais de 1996, estabeleceu, no § 3º do seu art. 11, que vinte por cento, no mínimo, das vagas de cada partido ou coligação deverão ser preenchidas por candidaturas de mulheres.
30. Já a Lei nº 9.504/97, que tem o objetivo de ser lei eleitoral permanente, estatuiu, no § 3º do seu art. 10, que, do número de vagas resultante das regras previstas naquele artigo, cada partido ou coligação deverá reservar o mínimo de trinta por cento e o máximo de setenta por cento para candidaturas do mesmo sexo.
31. Atente-se para a fórmula adotada, que limita em um mínimo de trinta por cento e um máximo de setenta por cento das vagas para cada sexo, buscando um relativo equilíbrio entre os gêneros no que diz respeito às candidaturas parlamentares.
32. Para concluir, cabe recordar as seguintes palavras do Professor FÁBIO KONDER COMPARATO:
“(...) objeto da isonomia é a igualdade de normas, enquanto que as chamadas liberdades materiais têm por objetivo a igualdade das condições sociais. No primeiro caso, a igualdade é um pressuposto da aplicação concreta da lei; ao passo que, no segundo, ela é uma meta a ser alcançada, não só por meio de leis, mas também pela aplicação de políticas ou programas de ação estatal. Não há, pois, por que se pretender apagar ou escamotear as desigualdades sociais de fato entre os homens, com a aplicação da isonomia. Como bem afirmou Rousseau, ‘sob os maus governos’ essa igualdade é aparente e ilusória; ou seja, é meramente formal, como disseram ao depois os marxistas. E isto, porque a abolição dos estamentos e a submissão de todos à lei votada por todos, ou por seus representantes legítimos, não significa, por si só, a equiparação de fortunas ou modos de vida. Os ‘maus governos’ a que aludiu o autor do ‘Contrato Social’ são, exatamente, os que procuram justificar sua omissão no campo das desigualdades sociais com o princípio da igualdade de posição jurídica individual;
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quando uma coisa não se confunde nem dispensa a outra.” (ob. cit., p.77/78
Ante todo o exposto, a nossa opinião – como já adiantado no início deste texto – é a de que, em tese, são constitucionais medidas de ação afirmativa que visem proporcionar igualdade a minorias, inclusive medidas que, por exemplo, fixem percentuais a serem ocupados por essas minorias em obras e serviços públicos ou em universidades públicas.
Na verdade, consoante lição de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, acima transcrita, a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de leis nesse sentido depende de se o tratamento diverso outorgado à minoria for ‘justificável’, por existir uma ‘correlação lógica’ entre o ‘fator de discrímen’ tomado em conta e o regramento que se lhe deu. Se assim for, a norma ou a conduta são compatíveis com o princípio da igualdade; se, pelo contrário, inexistir esta relação de congruência lógica, a norma ou a conduta serão incompatíveis com o princípio da igualdade.
Consultoria Legislativa, em 29 de junho de 1998.
FERNANDO TRINDADE
Consultor Legislativo

sábado, 30 de janeiro de 2010

FAZENDO UMA RESENHA

Prof. Dr. Pedro Cezar Dutra Fonseca

Resenha é um trabalho de síntese que revistas e jornais científicas publicam geralmente logo após a edição de uma obra, com o objetivo de divulgá-la. Não se trata de um simples resumo.

O resumo deve se limitar ao conteúdo do trabalho, sem qualquer julgamento de valor. Já a resenha vai além, resume a obra e faz uma avaliação sobre ela, apresentando suas linhas básicas, deve avaliá-la, mostrando seus pontos fortes e fracos.

A resenha pode ser de um ou mais capítulos, duma coleção ou mesmo dum filme. Apresenta falhas, lacunas e virtudes, explora o contexto histórico em que a obra fora elaborada e faz comparações com outros autores.

Conhecida como resumo crítico, a resenha só pode ser elaborada por alguém com conhecimentos na área, pois sua elaboração exige opinião formada, pois além de resumir, o resenhista avalia a obra, sustentando suas considerações, deve embasá-las seja com evidências extraídas da própria obra ou de outras de que se valeu para elaborar a resenha.

"Se o resumo do conteúdo da obra não está bem feito, o leitor que não a conhece encontrará dificuldades em acompanhar a análise crítica. Se, por outro lado, o recensor se limita a relatar o conteúdo, sem julgá-lo criticamente, ele estará escrevendo um resumo e não uma recensão crítica. Finalmente, se ele não sustenta ou ilustra seus julgamentos com dados extraídos da obra recenseada, ele não dá ao leitor a oportunidade de formar seus próprios julgamentos".

De uma boa resenha devem constar:

a referência bibliográfica da obra, preferencialmente seguindo a ABNT;

alguns dados biográficos relevantes do autor (titulação, vínculo acadêmico e outras obras, por exemplo);

o resumo da obra, ou síntese do conteúdo, destacando a área do conhecimento, o tema, as idéias principais e, opcionalmente, as partes ou capítulos em que se divide o trabalho. Deve-se deter no essencial, mostrando qual é o objetivo do autor, evitando recorrer a detalhes e exemplos, com máxima concisão. Este momento é mais informativo que crítico, embora a crítica já possa estar presente;

as categorias ou termos teóricos principais de que o autor se utiliza, precisando seu sentido, o que ajuda evidenciar seu approach teórico, situando-o no debate acadêmico e permitindo sua comparação com outros autores. Aqui não só se deve expor claramente como o autor conceitua ou define determinado termo teórico, mas já se deve introduzir críticas, seja à utilização ou à própria conceituação feita pelo autor [em uma resenha para revistas especializadas, esta parte pode ser dispensada, até por economia de espaço, mas é essencial em trabalhos de aula, em que o recensor é também aprendiz];

a avaliação crítica, nos termos já referidos anteriormente no item 1. Este é o ponto alto da resenha, onde o recensor mostra seu conhecimento, dialoga com o autor e/ou com leitor, dá-se ao direito de proceder a um julgamento. Há vários tipos de críticas, mas destacam-se: (a) a interna, quando se avalia o conteúdo da obra em si, a coerência diante de seus objetivos, se não apresenta falhas lógicas ou de conteúdo; e (b) a externa, quando se contextualiza o autor e a obra, inserindo-os em um quadro referencial mais amplo, seja histórico ou intelectual, mostrando sua contribuição diante de outros autores e sua originalidade.

Atualmente quase todas as revistas científicas trazem boas seções de resenhas. Sempre é aconselhável ir a uma biblioteca e consultar alguns destes periódicos para observar atentamente como os mais destacados profissionais e pesquisadores da área as elaboram.

Características principais:

Cabeçalho da introdução com o nome da obra
Retomar sempre o nome do autor
Finalização
bibliografia

Finalmente, deve-se lembrar que o recensor deve preocupar-se com a obra em sua totalidade, sem perder-se em detalhes e em passagens isoladas que podem distorcer idéias. Deve-se certamente apresentar e comentar pontos específicos, fortes ou fracos do trabalho, mas estes devem ser relevantes. Nada mais deplorável do que uma crítica vazia de conteúdo, sem base teórica ou empírica, que lembre preconceito. Ou elogios gratuitos, que podem parecer corporativismo ou "puxa-saquismo".

A MAGISTRATURA

O Poder Judiciário é o Órgão incumbido de aplicar o Direito, dirimindo litígios e controvérsias trazidos à sua apreciação.
O ingresso na carreira da Magistratura se dá através de concurso público de provas e títulos, salvo na hipótese disciplinada no art. 94 da atual Constituição, que, ao tratar do chamado “quinto constitucional”, estabelece que “um quinto dos lugares dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais dos Estados, e do Distrito Federal e Territórios será composto de membros do Ministério Público, com mais de dez anos de carreira, e de advogados de notório saber jurídico e de reputação ilibada, com mais de dez anos de efetiva atividade profissional, indicados em lista pelos órgãos de representação das respectivas classes”.
Objetivando impedir ingerência externa e assegurar o desempenho soberano da justiça, a Constituição estabelece certas garantias à Magistratura. Com efeito, são predicamentos inerentes a ela:
a) Vitaliciedade: garante ao juiz a permanência em seu cargo, ainda que suas decisões venham a contrariar interesses dos outros Poderes de Estado. Adquirida a vitaliciedade, após 2 anos de exercício do cargo, o juiz só a perderá por sentença judicial transitada em julgado.
b) Inamovibilidade: garantia de permanência no cargo, salvo por motivo de interesses público e através de decisão fundada no voto de 2/3 do tribunal a que estiver vinculado.
c) Irredutibilidade de vencimentos: traço garantidor da independência do juiz na difícil missão de julgar, o que não o libera da sujeição aos impostos gerais, inclusive o de renda e extraordinário.

Postado por: Profa. Silvania Mendonça Almeida Margarida
Fonte: s.n.t

0 QUE É PATRIMÔNIO DA HUMANIDADE?




Cristina Amorim e Marcelo Ferroni


Daniela Ferreira Marcos, São José de Meriti, RJ

Riqueza mundial

Um patrimônio da humanidade é um local considerado valioso para todo o mundo, independentemente de onde está localizado. Quem credita o título é a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura).

O patrimônio é classificado em cultural, natural ou misto. O cultural é composto por monumentos e grupos de edifícios ou sítios que tenham valor histórico, estético, arqueológico, científico, etnológico ou antropológico. Até mesmo músicas podem ser consideradas patrimônio (veja na página 17). Natural vale para formações físicas, biológicas e geológicas excepcionais, hábitats de espécies animais e vegetais ameaçadas e áreas que tenham valor científico, de conservação ou estético.

A indicação deve seguir esses critérios e partir das próprias nações signatárias do tratado que criou o conceito em 1972. A solicitação deve incluir um plano detalhado sobre a administração e a proteção do sítio.

Com o tombamento, o país pode contar com recursos administrados pela Unesco para conservar o local. Em risco, ele é incluído na Lista de Patrimônios Ameaçados e recebe atenção especial da organização.

Atualmente, há 754 patrimônios em todo o mundo - 149 naturais, 582 culturais e 23 mistos. O Brasil guarda 17 deles - sete naturais e dez culturais.

MEMÓRIA CULTURAL E O PATRIMÓNIO INTANGÍVEL

José Albano Volkmer

José Albano Volkmer é arquiteto e professor da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

A política da preservação do patrimônio cultural no Brasil, tanto ao nível da União, como dos Estados e dos Municípios, tem percorrido um caminho crescentemente integrador das iniciativas públicas e particulares. Talvez lento, sob determinados pontos de vista, este processo apresenta tendências de desenvolvimento particularmente peculiar em determinados aspectos, diante de um progressivo movimento de educação e de conscientização das comunidades. Amalgamada por intenso caldeamento de culturas, a sociedade brasileira apresenta um plural mosaico de expressões e de manifestações culturais peculiares aos diferentes grupos étnicos que aportaram ao território nacional, nem sempre se ajustando e muitas vezes se contrapondo à milenar cultura pré-cabralina das nações indígenas.

Os bens de natureza material e imaterial, segundo os dispositivos da Constituição da República Federativa do Brasil, portadores de referência à identidade, à ação e à memória dos grupos formadores da sociedade, constituem o patrimônio cultural, que todos têm o dever de valorizar, difundir e preservar. Protegendo as manifestações dos segmentos que participaram e participam do processo civilizatório nacional, cada um e todos devem assumir o compromisso de zelar e de promover a memória nacional. De imediato ressalta ao exame mais cuidadoso deste tema, a preocupação da Assembléia Nacional Constituinte em enfatizar claramente, quando da promulgação da nova Constituição em 1988, a identificação do caráter dos bens que são conceituados como de natureza cultural.

Não será difícil constatar, hoje, os benefícios já alcançados pelas iniciativas de valorização e proteção do patrimônio material, no contexto das diversas instâncias da administração pública e das comunidades, pelos esforços empreendidos antes e depois da nova Carta. O mesmo, talvez, não seja possível afirmar com relação ao patrimônio imaterial. Parece estar distanciado da compreensão dos mais amplos setores da sociedade, pela dificuldade de conscientização e de sua percepção por parte das comunidades. No plano educacional, o conjunto dos valores que constituem o patrimônio imaterial tem sido pouco contemplado, até por ser difícil a verificação do grau de percepção que as comunidades e os cidadãos têm a respeito de seu papel na gestão do processo de promoção e proteção do patrimônio cultural brasileiro. As dificuldades de contemplá-lo, prioritariamente, nos planos e programas de governo, bem como nas ações da iniciativa privada, têm retardado a sua inclusão dentre as medidas de proteção do patrimônio cultural.

O tema, por ser recente a sua consideração na política cultural em nosso meio, requer um aprofundamento dos estudos, das reflexões e das práticas que vêm sendo desenvolvidas sobre o "patrimônio imaterial" ou "patrimônio intangível", pois implica no entendimento do seu significado para a "memória cultural". Para muitos certamente são imperceptíveis os aspectos relativos às formas de expressão, aos modos de criar, fazer e viver, às criações artísticas, científicas, tecnológicas, dentre outros, de acordo com os sentimentos e os seus significados, face aos valores imateriais aceitos por alguns segmentos das comunidades. Dependendo, quase sempre, dos estágios de desenvolvimento cultural e educacional de um grupo social, o patrimônio intangível, por outro lado, passa a ser de grande valor e peso nos processos de avaliação da comunidade, cumprindo um papel significativo nas políticas culturais.

Os documentos e os objetos têm uma relação direta com os interesses ligados aos sentimentos, aos significados simbólicos e aos valores não só materiais, mas intangíveis, que possam despertar nas comunidades e nas pessoas. As obras de arquitetura, de urbanismo, de paisagismo e os espaços destinados às manifestações artístico-culturais podem ganhar uma expressão menor ou maior para o povo, dependendo do ponto de vista sobre quais funções poderão desempenhar, enquanto representem símbolos ou signos idealizados já vividos, ou que possam ser vivenciados no futuro. Assim, muitas edificações e espaços abertos poderão ser considerados como passíveis de preservação, ou serem relegados à decadência física, inviabilizando-os à sustentabilidade e à sua reutilização para fins estéticos, poéticos, artísticos ou comerciais e turísticos. Os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, botânico, paleontológico, arqueológico, ambiental e científico podem adquirir uma dimensão além de suas expressões puramente materiais, para se converterem em habitats que representem aspirações de poesia, de arte, de religiosidade, de contemplação, de transcendência, ou de prazer, de beleza e de emoção.

Assim os valores intangíveis podem cumprir papéis importantíssimos no processo de desenvolvimento cultural do povo, pelo significado de seus desempenhos no contexto das aspirações de grupos sociais e da comunidade. Os mitos, os sonhos, as idealizações, a sabedoria popular e o imaginário coletivo, para citar alguns exemplos, não poderão ser deixados de lado no exame das potencialidades e da riqueza do patrimônio imaterial da sociedade, pelo papel simbólico que poderão cumprir. Também outras formas de identificação dos elementos portadores de valor sensitivo, podem conduzir à percepção de signos emblemáticos, como uma paisagem em dia de tempestade ou um pôr do sol, observados por um taciturno agricultor, ou por um jovem estudante secundarista da região metropolitana de São Paulo.

Abstraindo-se a materialidade imanente aos bens culturais tangíveis, o homem tem a virtude de imantá-los de conteúdos imateriais, que não podem deixar de ser contemplados nas abordagens deste tema, por indispensáveis à política de promoção da cultura. Não devem ser excluídos, portanto, dos programas de preservação e das medidas de acautelamento na defesa e proteção do patrimônio cultural. Tais ações e iniciativas são imprescindíveis garantias para as gerações futuras, que têm o direito à fruição dos bens portadores de conteúdo emocional, estético, plástico e sentimental. Inebriados, pois, de valores intangíveis, integram-se ao patrimônio dos bens portadores de conteúdo histórico e cultural mais palpáveis e perceptíveis pela sua materialidade, suficiente para a mais simples das compreensões.

Em muitos casos, só é possível conhecer a sensibilidade das pessoas para a valorização do patrimônio intangível, quando se tem a capacidade de nelas despertar os sentimentos e sonhos fundamentais como a beleza, o encantamento e o prazer, que sem dúvida são valores universais. Desta forma, pela sensibilização dos sentimentos e pela prática educativa e cultural, a valorização do patrimônio imaterial pode transformar os bens de valor local ou regional, em bens de valor universal, dependendo da capacidade criativa de interpretá-los na ótica da universalidade de seus elementos. Assim, portanto, um mito, um ídolo, um sentimento, uma epopéia de valor peculiar à uma determinada comunidade, podem se transformar em bens de interesse supralocal, passando a se perpetuar e a se integrar ao patrimônio cultural da comunidade nacional e internacional.

Resulta, pois, a partir desta análise, destacar a importância dos estudos e das pesquisas, que permitam inventariar e registrar o conjunto dos bens do patrimônio material e imaterial, indissociáveis e indispensáveis para a coletividade. Os valores amalgamados pela aculturação dos povos indígenas com os europeus, os heróis locais e nacionais, a figuras legendárias, os sítios da colonização, das frentes pioneiras e dos quilombos, que produziram histórias do cotidiano e poemas heróicos e épicos do processo de ocupação dos novos territórios e suas manifestações culturais, constituem-se, sem dúvida, em elementos passíveis de serem incorporados aos programas e projetos da política cultural brasileira. As lendas constituem-se em temas para eventos a serem encenados, por exemplo, em espaços públicos ou em casas de cultura sediadas em prédios históricos reciclados, intencionalmente concebidos para se ajustarem às manifestações de literatura e das artes.

Os sítios históricos devem integrar o acervo patrimonial brasileiro, pela sua importância arqueológica, arquitetônica, urbanística e paisagística, como podem interessar para o cinema, para o teatro, para as artes, assim como para o turismo cultural. As experiências humanas de construção de um novo modelo contemporâneo de vida e de uma nova sociedade, do desenvolvimento científico e tecnológico, através de empreendimentos materiais como a construção de hidrelétricas, que atraem um inestimável número de empregos para migrantes, muitas vezes, de uma região para outra, de um continente para outro, são potencialmente portadoras de inestimáveis valores do patrimônio imaterial destas populações. As associações de bairro, as organizações da comunidade e as instituições da sociedade são, também, importantes segmentos sociais que trazem inumeráveis contribuições aos modos de fazer, de reunir, de produzir e de se expressar, que não podem ser excluídas das políticas de promoção e valorização do patrimônio cultural. Os sentimentos que potencializam e estimulam, por exemplo, as políticas de desenvolvimento do turismo cultural, ecológico, esportivo, de aventura e de lazer, impregnam o patrimônio material de valores intangíveis, sem os quais não seriam os bens usufruídos por contingentes cada vez mais expressivos.

O Brasil detém potencialidades inestimáveis na área do patrimônio cultural e ambiental, caracterizadas pela pluralidade das expressões mais diversificadas das manifestações dos seus diferentes grupos formadores da sociedade brasileira contemporânea. Todas as instâncias da administração pública, das universidades, das escolas, das empresas e das comunidades têm, portanto, a responsabilidade de prover pelo desenvolvimento e pela preservação da memória cultural, cujos bens precisam ser inventariados e prestigiados. O que tem sido feito talvez não seja o bastante, para o mais completo empreendimento que a todos convoca. Importa a conscientização e a tomada de posição, para que as administrações municipais, estaduais e nacional assumam o compromisso de arregimentar todos e quantos poderão se engajar neste movimento pelo resgate de muitos valores que estão sendo relegados a um segundo plano, ou estão sendo irremediavelmente esquecidos ou perdidos.

Evidentemente, as políticas de educação e cultura não poderão olvidar os aspectos que, muitas vezes por desconhecimento, desaviso ou omissão, são preteridos em diversas comunidades em suas ações de planejamento e programação cultural, tornando-as vulneráveis às influências que podem descaracterizar os valores locais, em detrimento de imposições externas. Trata-se, neste caso, da transferência de valores de uma cultura para outra, da influência que pode gerar dominação ou intromissão indevida ou das resistências às mudanças, fechando-se às benéficas contribuições da integração cultural, da sustentabilidade e do estímulo ao mútuo convívio. Por isso, devem ser estimulados os debates que conviriam ser introduzidos sobre as questões relacionadas à aculturação e à preservação do caráter peculiar da cultura local. Este tema tem sido já estudado, mas talvez não tenham sido esgotadas as avaliações dos aspectos sociológicos, antropológicos e histórico-culturais, para citar um exemplo, da transferência de valores europeus para a América, na área das letras, das artes, da tecnologia ou da arquitetura.

No caso da propaganda comercial para a expansão do turismo receptivo, muitas comunidades estimulam, em suas cidades, a produção hoje de uma arquitetura, que busca imitar, ou se identificar, com a arquitetura da região dos Alpes, por exemplo, ou da Suíça, Baviera ou da região mediterrânea na Europa. Ilusória, para uns, realista para outros, por estimular o crescimento do comércio, da indústria e do turismo receptivo, a denominada arquitetura de enxaimel de influência bávara vem sendo fomentada na região serrana do Rio Grande do Sul, no Vale do Itajaí em Santa Catarina, em Campos do Jordão em São Paulo, dentre muitos casos, como uma marca, um símbolo emblemático de um produto que está sendo vendido cada vez mais intensamente. Leis municipais de incentivos fiscais e urbanísticos têm sido aprovadas para estimular a construção de obras de arquitetura discutível, pela sua plasticidade falsificada sob a forma de pastiche. É uma verdadeira colagem, em nosso meio, de uma arquitetura que não é brasileira, nem afeita à nossa paisagem e aos nossos valores culturais. É tal a expectativa de alcançar o sucesso, através da criação de um ambiente urbano, arquitetônico e paisagístico com aparência bávara, suíça, austríaca, tirolesa, ou simplesmente alpina, que qualquer aproximação com o chamado estilo enxaimel europeu é suficiente para proporcionar a redução ou a isenção dos impostos sobre a propriedade, bem como os estímulos urbanísticos dos Planos Diretores para a intensificação da construção.

É preciso, pois, uma certa cautela e o aprofundamento dos estudos sobre a produção destes elementos ilusórios que distorcem a realidade, que geram um imaginário de contos de fadas, que produzem o pastiche. Tais fatos não ocorrem apenas na arquitetura, mas em todas as manifestações culturais. É preciso buscar a superação das contradições entre verdadeiro e o falso, entre a imitação e o autêntico, da importação de valores ou da produção local. A cópia é um gesto fácil. Indispensável é a busca da identidade própria dos valores culturais de cada região, de cada lugar, de cada sítio ou manifestação de cultura. A cultura deve ser expressão do fazer humano, diante dos valores e dos meios de produção, diante das características locais e do meio ambiente, dos modos de viver e de suas influências. Importa, todavia, a criatividade no ato de adaptar, ajustar, de gerar novas soluções peculiares, diferentes e próprias de cada lugar. É fundamental o desenvolvimento de ações específicas que resultem num esforço de integração entre as artes, da arte com a técnica, dos valores humanos com a sensibilidade plástica, dos condicionamentos ambientais com os valores locais. Podem ser aproveitadas, sim, as contribuições criativas de fora, que trazem cultura, que enriquecem o repertório, a tecnologia, o conhecimento, que estimulam o desenvolvimento, não com a simples transposição, mas com a perspicaz adaptabilidade para a produção local das novas contribuições à cultura. Também devem ser valorizadas as contribuições que podem ser levadas para fora, num intercâmbio profícuo e enriquecedor de convivência, equilíbrio, cooperação e apoio mútuo.

Os diversos órgãos da administração pública na área do patrimônio cultural detém o inestimável instrumento de congregação de técnicos, de especialistas e de dirigentes culturais. Agentes diretos dos processos de gestão do patrimônio cultural, ao nível das comunidades locais, regionais, estaduais e nacional, estas organizações e suas representações poderão fomentar a realização de inúmeros fóruns sobre estes temas relacionados aos valores materiais e imateriais, passíveis de salvamento, resgate, proteção, preservação e difusão do patrimônio cultural riograndense. Por seu turno, os municípios dispõem, basicamente, de todos os instrumentos que a administração pública pode dispor para a gestão pró-ativa da preservação do patrimônio cultural. Tal evolução coloca ao alcance das comunidades locais os mais avançados mecanismos de gestão, dentro das limitações conjunturais que condicionam a prática administrativa. Somados estes esforços aos do Estado e da União, de forma integradora e compatível com o desenvolvimento da nacionalidade, a política cultural necessitará de um esforço de complementaridade e de adoção do princípio da subsidiariedade na gestão da administração pública. Isto quer significar, noutros termos, que não deve a União fazer o que o Estado possa fazer melhor. Não deve o Estado fazer o que os Municípios puderem melhor realizar e não devem os Municípios empreender o que a comunidade e as organizações sociais puderem melhor concretizar.

Há, contudo, a necessidade de intensificar a organização e a associação das comunidades municipais e microrregionais, na área da cultura e da proteção do patrimônio histórico, artístico e cultural. Tais práticas poderão ser alcançadas mais adequada e urgentemente por outras formas de organização associativa e gremial dos municípios, na medida em que o movimento de estímulo à cooperação puder promover a elaboração de um Código de Ética e de Coexistência na conservação de sítios, dos bens de valor histórico, artístico, documental e do patrimônio cultural, representativos de todas as contribuições sócio-culturais das comunidades. Coexistência, sim, das diversidades no reconhecimento dos valores de cada grupo e das exigências de compreensão, cooperação e colaboração, que a ética na política cultural requer na prática da conservação do patrimônio. Indispensável se torna, pois, o esforço dos mais amplos segmentos da representação das comunidades municipais, para a mobilização em favor do desenvolvimento de uma política de princípios e de práticas que identifiquem os valores sociais. Prioritário é o reconhecimento da valorização do patrimônio sócio-cultural na gestão do planejamento municipal e na implementação do processo de execução da política cultural, com a co-participação das comunidades, sem exclusões e estimulando o fortalecimento do caráter peculiar e o compartilhamento de todas as manifestações dos grupos formadores da sociedade brasileira, ampliando e intensificando, desta forma, a construção da memória cultural
Disponível em: http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arquitextos.asp
Acesso em: 29 jan 2010

JURISPRUDÊNCIA DE RIBEIRÃO PRETO SOBRE O AUTISMO


EXMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA VARA CÍVEL DE RIBEIRÃO PRETO.




O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, representado pelo Promotor de Justiça da Pessoa Portadora de Deficiência de Ribeirão Preto, infrafirmado, vem a presença de Vossa Excelência, com fundamento nas disposições dos artigos 129, incisos III, da Constituição da República; 5º, da Lei Federal nº 7.347/85; art. 25, IV, “a”, da Lei nº 8.625, de 12 de fevereiro de 1993 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público); art. 3º, da Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989 (Lei que dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência, sua integração social, sobre a Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência – Corde , institui a tutela jurisdicional de interesses coletivos ou difusos dessas pessoas, disciplina a atuação do Ministério Público e define crimes) e 282 e seguintes do Código de Processo Civil, propor a presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA, COM PEDIDO DE LIMINAR, em face da ASSOCIAÇÃO DE AMIGOS DOS AUTISTAS DE RIBEIRÃO PRETO – AMA/RP, pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, inscrita no CNPJ sob o nº 57.715.989/0001-37, sediada na rua Nélio Guimarães, 184, neste Município de Ribeirão Preto; de MARIA DO CARMO DE ALMEIDA SAMPAIO LACERDA FERRAZ, brasileira, casada, portadora do RG. 6.381.704-4 – SSP-SP, presidenta da Associação de Amigos dos Autistas de Ribeirão Preto – AMA/RP, residente na rodovia Anel Viário Sul, km 312, Condomínio Colina Verde, Ribeirão Preto, S.P.; de MARIA CRISTINA BONASSOLI VERDI, brasileira, separada, portadora do RG. 29.321.652-6 – SSP-SP, coordenadora geral da Associação de Amigos dos Autistas de Ribeirão Preto – AMA/RP, residente na rua Inácio Bruno da Costa, 545, Ribeirão Preto, S.P. e de CAMILA GÓES SAMPAIO DO AMARAL, brasileira, solteira, portadora do RG. 25.758.904-6 – SSP-SP, coordenadora técnica da Associação de Amigos dos Autistas de Ribeirão Preto – AMA/RP, residente na rua João Alves Pereira, 450, Ribeirão Preto, S.P., pelos fatos e fundamentos jurídicos adiante articulados:

1- DOS FATOS:
A Associação de Amigos do Autista – AMA é entidade civil de caráter assistencial, que tem como objetivos prestar atendimento educacional, ambulatorial e terapêutico às pessoas portadoras de autismo. O autismo, segundo Classificação Internacional de Doenças, da Organização Mundial de Saúde[1], é um transtorno global do desenvolvimento, caracterizando, assim um desenvolvimento anormal ou alterado, o qual deve se manifestar antes da idade de três anos e apresentar uma perturbação característica das interações sociais, comunicação e comportamento.
O portador de autismo manifesta, em regra, dificuldade em usar adequadamente o contado ocular, expressão facial, gestos e postura corporal para lidar com a interação social; tem dificuldade de desenvolver relações de companheirismo; não tem reciprocidade social e emocional; tem pouca flexibilidade na expressão de linguagem e relativa falta de criatividade e imaginação em processos mentais; tem apego específico a objetos incomuns; tem compulsão a rotinas ou rituais não funcionais específicos; tem hábitos motores e esteriotipados e repetitivos e manifesta ansiedade com relação a mudanças em pequenos detalhes não funcionais do ambiente. Dessa forma, o autista padece de deficiência mental grave, circunstância que o qualifica legalmente como pessoa portadora de deficiência.
Nos termos do art. 4º, do Decreto nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999 (regulamentador da Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989):
Art. 4º - é considerara pessoa portadora de deficiência a que se enquadra nas seguintes categorias:
IV- deficiência mental – funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como:
a) comunicação;
b) cuidado pessoal;
c) habilidades sociais;
d) utilização da comunidade;
e) saúde e segurança;
f) habilidades acadêmicas;
g) lazer; e
h) trabalho.

Assim, por se tratar de instituição de utilidade pública e tendo em vista a relevância dos serviços que lhe estão afetos, a AMA/RP recebe subvenção do poder público municipal, no importe de R$ 330,00 (trezentos e trinta reais) para cada aluno, respeitado o limite máximo de 34 alunos, conforme termo de convênio alojado às fls. 450 a 452 do inquérito civil 532.1.234.8/02. A AMA atende regularmente entre 40 e 50 pessoas autistas.
Ocorre que, segundo se apurou nos inquéritos civis nºs 361.1.146.8/02 e 532.1.234.8/02, que tramitaram pela Promotoria da Pessoa Portadora de Deficiência de Ribeirão Preto, a AMA/RP, pelas dirigentes e prepostas ora requeridas, vem cometendo irregularidades nas esferas administrativa e pedagógica, de modo a comprometer a seriedade, a credibilidade e o atendimento adequado às pessoas portadoras de autismo.

1.1. DAS IRREGULARIDADES ADMINISTRATIVAS:
Em agosto de 2001, A AMA/RP, por via funcionária Marinalva Lanzoni Chaves, que exercia na entidade o cargo de Assistente Social, conforme documento de fls. 360, do IC respectivo, se dirigiu à Promotoria de Justiça da Pessoa Portadora de Deficiência para solicitar o ajuizamento de medida social em favor de pessoas autistas, desprovidas de representação legal, que faziam jus ao recebimento do benefício de prestação continuada a que se refere o art. 20, da Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993 (Lei Orgânica da Assistência Social), consoante demonstra o documento de fls. 08 do referido IC.
Na ocasião, informou a AMA/RP que vinte e duas pessoas atendidas pela entidade necessitavam de termo de guarda ou de curatela, vez que se tratavam de pessoas sem vínculo familiar, encaminhadas por hospitais, albergues e serviços de obras sociais, sendo muitas procedentes de outros estados (fls. 08, 09 e 69, do IC. 361.1.146.8/02).
Acreditando na seriedade da AMA/RP e das pessoas que a administram, no papel de promoção da defesa dos interesses das pessoas portadoras de deficiência, colhida a documentação necessária, a Promotoria de Justiça ajuizou pedidos de guarda e interdição perante os juízos da 5ª e da 10ª Varas Cíveis locais, conforme documentos de fls. 78 e 81.
É importante consignar que a Sra. Marinalva Lanzoni Chaves, que se apresentava como assistente social da AMA perante a Promotoria de Justiça, possuía procuração por instrumento público da representante legal da entidade, a presidenta, co-ré, Sra. Maria do Carmo de Almeida Sampaio Lacerda Ferraz, para protocolar, assinar e administrar os benefícios de prestação continuada (fls. 11, do IC 361.1.146/8/02).
Ocorreu, entretanto, que o pedido dirigido à Promotoria de Justiça continha informações falsas. Os alunos para os quais se postulava guarda ou curatela possuíam representantes legais. Tal descoberta veio à tona quando as Sras. Ângela Maria Bomtempo Rangel e Marta Conceição Tosta de Freitas, mães dos alunos Diego Rangel e Gustavo Tosta de Freitas, que constavam da relação encaminhada para fim de pedido de guarda ou curatela, compareceram na Promotoria de Justiça e declararam não haver autorizado qualquer procedimento para se obter o aludido benefício (fls. 92 e 93, do IC. 361.1.146.8/02). Com isso, ficou evidenciada a falsidade da declaração encaminhada pela AMA/RP à Promotoria no sentido de que tais alunos estavam desprovidos de representação legal, assim como o intuito de locupletamento ilícito, pois o valor do benefício, caso recebido, não seria utilizado para a mantença do autista.
Apurou-se, ao depois, que todos os alunos que constavam da relação de supostos indigentes e órfãos possuíam representantes legais (fls. 214, do IC. 361.1.146.8/02).
O que inspira maior gravidade é que, mesmo sem haver obtido os termos de guarda ou curatela, vez que os processos foram suspensos quando descoberta a fraude, a AMA/RP conseguiu obter junto ao Instituto Nacional do Seguro Social benefícios em favor dos alunos Wesley Rodrigo da Silva, Lorena Turati Cordova, Diego Rangel e Leonardo Verdi Alarcon, conforme documento de fls. 278, e a procuradora para tais fins, a Sra. Marinalva Lanzoni Chaves chegou a receber o benefício outorgado em favor de Diego Rangel, sem repassar os valores respectivos à família (fls. 177 a 179 e 267, do IC 361.1.146.8/02).
O benefício de prestação continuada fora outorgado, também, consoante declinado, a Leonardo Verdi Alarcon (fls. 278 e 318, do IC. 361.1.146.8/02), filho da co-ré Maria Cristina Bonassoli Verdi, coordenadora da entidade, contratada com vínculo empregatício, que percebe, mensalmente, o importe mensal de R$ 1.150,00 (um mil, cento e cinqüenta reais), a título de salário, conforme documento de fls. 554, do IC 361.1.146.8/02. Tal benefício fora obtido de forma flagrantemente irregular, pois nos termos do art. 20 e § 3º, da Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993[2], somente faz jus ao seu percebimento a pessoa deficiente que não possui meios de prover a própria manutenção e nem de tê-la provida pela família, considerando-se hipossuficiente para tal fim a pessoa cuja família não possua renda per capita igual ou superior a ¼ (um quarto) do salário mínimo. À evidência, o filho da Sra. Maria Cristina, coordenadora geral da AMA/RP, não preencheria os requisitos para obtenção do benefício de prestação continuada, pois sua mãe percebe vencimentos superiores a cinco salários mínimos.
Observou-se, assim, que a AMA/RP, por sua preposta Marinalva Lanzoni Chaves, já desligada da entidade, com procuração outorgada pela presidenta, utilizava os nomes dos autistas atendidos para buscar, ilegalmente, a consecução de benefícios de prestação continuada, cujos valores seriam objeto de locupletamento. E é importante ressaltar que mesmo tendo conhecimento de que os alunos possuíam representantes legais, que poderiam, caso preenchido os requisitos exigidos por lei, pleitear o benefício de prestação continuada, a presidenta da AMA/RP outorgou procuração à Sra. Marinalva para protocolar pedidos junto ao INSS, obter e administrar benefícios. Estava patente, assim, o intuito de obtenção fraudulenta e indevida de benefícios eventualmente devidos aos autistas.
Chama a atenção, também, o fato da Sra. Marinalva exercer ilegalmente a profissão de assistente social, segundo se apurou junto ao Conselho Regional de Serviço Social (fls. 257, do IC. 361.1.146.8/02)
A narrada situação, por si só, demonstra que a administração da AMA/RP, representada pelas co-requeridas Maria do Carmo de Almeida Sampaio Lacerda Ferraz, a presidenta e Maria Cristina Bonassoli Verdi, a coordenadora geral, não está devidamente qualificada para cuidar de instituição de tamanha relevância para a comunidade, que conta para a sua mantença com verbas originárias dos cofres públicos, conforme já noticiado anteriormente. Não se pode conceber que uma entidade que presta serviços de caráter público, por suas representantes legais, se envolva no encaminhamento de informações falsas ao Ministério Público e à Previdência Social, com o escopo de obtenção fraudulenta de benefício previdenciário, bem como de locupletamento dos valores respectivos. Esses acontecimentos, além de constituir grave infração administrativa, têm repercussão na esfera criminal e a Promotoria de Justiça já tomou providências para o desencadeamento de persecução penal.
Além desses fatos, há evidências claras de que a direção da AMA/RP nega atendimento a pessoas autistas cujos representantes legais manifestem discordância com as posturas administrativas da entidade, infringindo o princípio constitucional da universal acessibilidade ao ensino. Além disso, propõe a exclusão de associados que não comungam com as posições externadas pela direção.
Observa-se pelo teor da ata de Assembléia Geral Ordinária realizada pela entidade em 16 de março de 2002, que foi proposta e aprovada a exclusão sumária dos associados Ângela Maria Bontempo Rangel, Gonçala da Silva Marcelo, Marta Conceição Tosta de Freitas, Rosa Conceição Salvador Copedei e Jair Copedei, pessoas que teriam formulado denúncias contra a direção da AMA/RP (fls. 583 a 585, do IC 361.1.146.8/02). Na mesma ata fora definido que tais pessoas, excluídas do quadro associativo, não poderiam ingressar na entidade, de modo que os filhos seriam recebidos do lado de fora e eventual comunicação somente se processaria por escrito.
A arbitrária decisão, tomada sem qualquer respaldo em procedimento investigatório e sem atribuição de direito de defesa, acabou gerando até mesmo ocorrência policial, na ocasião em que a mãe da aluna Daniele da Silva Marcelo, Sra. Gonçala da Silva Marcelo, fora expulsa do interior da entidade quando aguardava a médica que atende no local, para dela obter informações a respeito da saúde da filha (fls. 586, do IC 361.1.146.8/02).
O certo é que os associados excluídos ajuizaram medida judicial para suspender e anular a malsinada Assembléia Geral (fls. 557 a 582 e 604 a 613, do IC 361.1.146.8/02), obtendo provimento liminar para tal fim (fls. 593 a 595, do IC 361.1.146.8/02).
A mesma postura truculenta e arbitrária fora utilizada pela direção da AMA/RP contra o menor autista Rodrigo Francisco Orbie, que teve matrícula negada para o exercício de 2002, pelo fato de sua mãe Márcia de Lourdes Francisco haver empreendido diligências para apurar eventuais irregularidades financeiras da entidade. Observe-se, a respeito, as declarações da Sra. Márcia de Lourdes Francisco (fls. 137 a 140, do IC. 532.1.234.8/02). A ilegalidade cometida contra o menor, portador de autismo, movida por mera perseguição à sua mãe, fora enfrentada pela Secretaria Municipal de Educação (fls. 592, do IC. 361.1.146.8/02) e sanada, ao depois, por medida liminar concedida em Mandado de Segurança (fls. 587 a 591, do IC. 361.1.146.8/02).
Constata-se, destarte, que a administração da AMA/RP, exercida por sua presidenta e pela coordenadora geral, co-rés, é pautada por rigoroso absolutismo, de modo a não se admitir questionamentos. Os associados ou pais de autistas que não concordam com os procedimentos administrativos estão fadados à perseguição e à própria exclusão. O pior é que a discriminação acaba por atingir os próprios autistas, pessoas que necessitam do atendimento da entidade, como se verificou no caso do menor Rodrigo Francisco Orbie e dos filhos dos associados excluídos do quadro associativo, cujos pais foram impedidos de ingressar a instituição e de se comunicar pessoalmente com a direção e os educadores.
Não se pode admitir que uma entidade, cujos serviços se apresentam de grande relevo para a sociedade civil, reconhecida como de utilidade pública e beneficiada por dinheiro público não mantenha uma administração absolutamente transparente, de modo a enfrentar e esclarecer pelas vias regulares os questionamentos formulados pelos associados. O regime democrático que permeia a sociedade brasileira é marcado pela legalidade, pela igualdade, pelo pluralismo de idéias e pela livre expressão do pensamento e uma entidade sem fins lucrativos, que presta serviço público por delegação, como é o caso da AMA/RP, que é autorizada pela municipalidade a ministrar educação especial, não pode ser gerida por pessoas despreparadas, de postura tirana, que se envolvem em fraudes de benefícios previdenciários e que prejudicam alunos pelo fato de não aceitarem as críticas dos pais.
Todos esses fatos levaram a Secretaria Municipal de Educação de Ribeirão Preto, órgão responsável pela autorização e fiscalização do ensino especial delegado, de primeiro grau, a instaurar procedimento investigatório (fls. 373 a 54, do IC. 361.1.146.8/02) e, inclusive, suspender o repasse de verba pública à AMA/RP, conforme declaração de fls. 547, do IC. 361.1.146.8/02, subscrita pela Secretária Municipal da Educação.

1.2. DAS IRREGULARIDADES PEDAGÓGICAS:
Chegou ao conhecimento da Promotoria de Justiça que AMA/RP utiliza, para educação especial das pessoas portadoras de autismo atendidas pela entidade, de método pedagógico que implica na imposição de castigos e estímulos aversivos.
Segundo se apurou, por determinação da Sra. Camila Góes Sampaio do Amaral, coordenadora técnica da AMA/RP, co-requerida, e com o assentimento da presidenta e da coordenadora geral da entidade, alunos autistas que apresentam suposto comportamento inadequado são submetidos a técnicas de castigo e estímulos repulsivos. Alunos que gritam em sala de aula são isolados no banheiro da sala, com a porta entreaberta e alunos que têm o hábito de cuspir e gritar recebem em sua boca gotas de extrato de boldo, de gosto amargo.
Os referidos métodos estavam sendo utilizados nos alunos Luana de Felício, Leonardo Brassarola, Eliel Ribeiro, Rodrigo Orbie e Ronaldo César e os pais desses autistas foram notificados de tal circunstância em data posterior ao início da utilização. Vale dizer: essas técnicas que importam em invasão e sofrimento ao aluno foram utilizadas sem prévia autorização dos representantes legais.
Os mencionados fatos foram confirmados pela Sra. Camila Góes Sampaio do Amaral, coordenadora técnica da entidade (fls. 26 a 28, do IC. 532.1.234.8/02) e pela Sra. Maria Cristina Bonassoli Verdi, coordenadora geral (fls. 34 a 36, do mesmo IC). Ambas defenderam a utilização dos métodos como recurso para ressocialização dos alunos autistas.
Os documentos de fls. 29 a 33, do IC. 532.1.234.8/02 comprovam que os pais foram comunicados da utilização das técnicas depois que elas estavam sendo aplicadas.
Rosa Maria de Miguel, mãe da autista Luana de Felício, com 14 anos de idade, declarou à Promotoria de Justiça (fls. 132 a 134, do IC. 532.1.234.8/02) que depois que a Sra. Camila Góes Sampaio do Amaral fora contratada como coordenadora técnica da AMA/RP, em substituição a Sra. Jupira, demitida, percebeu que sua filha passou a voltar para casa com arranhões, hematomas, com problemas gastrintestinais e sem apetite. Apontou que tomara conhecimento de que sua filha estava sendo submetida à técnica do spray de boldo, em razão do hábito de gritar, depois que ela estava sendo aplicada, tendo manifestado discordância para com tal situação. Declinou, também, que depois de desautorizar a utilização do boldo, fora informada de que a filha estava sendo isolada no banheiro da sala de aula, situação com a qual também não concordou. Esclareceu a Sra. Rosa que sua filha costuma gritar quando se sente pressionada e amedrontada, consignando jamais se verificar tal comportamento quando o tratamento empreendido envolve carinho. Declinou haver retirado sua filha da entidade em razão de tais fatos.
Márcia de Lourdes Francisco, mãe do menor autista Rodrigo Francisco Orbie, com 9 anos de idade, relatou à Promotoria de Justiça (fls. 137 a 140, do IC. 532.1.234.8/02), que fora comunicada de que as profissionais da entidade estavam utilizando extrato de boldo na boca de seu filho para contenção da mania de cuspir. Apontou que Rodrigo passou a apresentar problemas gastrintestinais e adotou gesto de defesa junto à face como demonstração de medo do spray de boldo. A exemplo do que fizera a Sra. Rosa, Márcia retirou o filho da instituição. Os documentos de fls. 188 a 190, do IC. 532.1.234.8/02 comprovam que Rodrigo Francisco Orbie experimentara problemas gastrintestinais no período em que era submetido à técnica do lançamento de extrato de boldo em sua boca.
Mister consignar que distúrbios de comportamento são comuns em pessoas portadoras de autismo, de modo que a educação do autista e o enfrentamento dos chamados comportamentos inadequados devem se pautar por tratamento digno, com a utilização de técnicas pedagógicas que envolvam atenção, proteção, colaboração e motivação. Não se pode admitir a aplicação de castigos e a utilização de métodos que inflijam sofrimento à pessoa que porta deficiência grave e necessita de cuidados especiais.
O parecer elaborado por profissionais que atuam no “Centro Ann Sullivan do Brasil”, uma das mais conceituadas instituições de atendimento às pessoas autistas, evidencia a inadequação e ineficiência e reprovabilidade do uso de punições, seja por motivos éticos, seja pela produção de efeitos colaterais, como, por exemplo, o estímulo à agressividade (fls. 214 a 225, do IC. 532.1.234.8/02).
O respeitável parecer, calcado em farto material doutrinário (fls. 226 a 396, do mesmo IC) e da lavra das Dras. Margherita Midea Cuccovia, Carmen Lúcia Martins Ragazzi e Cátia Crivelenti de Figueiredo Walter, profissionais de notáveis currículos (fls. 397 a 426, do mesmo IC) ressalta a existência de metodologias eficazes e saudáveis para educação de pessoas autistas.
A Associação de Amigos do Autista da Capital, da mesma forma, relatou à Promotoria de Justiça que a idéia de utilização de estímulos aversivos é reprovável e está fora de uso desde os anos 70, revelando-se estimuladora de agressividade para o educador e para o aluno (fls. 197 a 210, do IC. 532.1.234.8/02).
A respeito dos acontecimentos, a Promotoria de Justiça colheu, também, o parecer do Dr. Raymond Rosenberg, psiquiatra infantil de renome internacional (fls. 470 a 476, do IC. 532.1.234.8/02), que enfatizou o abuso de autoridade da equipe técnica da AMA/RP que decidiu pela utilização do método aversivo sem autorização dos exercentes do pátrio poder. Apontou que a abordagem aversiva em centros de tratamentos de autistas somente é admitida como último recurso, quando há serio risco de vida para o paciente, o que não se verificava no caso dos alunos da AMA/RP. Questionou, ainda, o preparo da equipe técnica, vez que se apresentou inusitado o fato de quatro autistas necessitarem de uma mesma abordagem na mesma instituição (porque não há criança autista idêntica à outra). Quanto à utilização do banheiro para fim de isolamento, procedimento denominado time out, questionou se o procedimento era aplicado para eliminação do comportamento da criança ou para alívio do terapeuta.
O certo é que o repulsivo método pedagógico aplicado na AMA/RP aos autistas, de responsabilidade das co-rés Maria do Carmo de Almeida Sampaio Lacerda Ferraz, Maria Cristina Bonassoli Verdi e Camila Góes Sampaio do Amaral, causou repercussão em todo o país, sendo objeto de notícia em diversos veículos de imprensa (fls. 04, 454 a 461).
Demonstrar-se-á nos itens subseqüentes desta inicial que as técnicas de imposição de castigos e estímulos aversivos, utilizadas na AMA/RP para educação das pessoas autistas é antiética, abusiva e ilegal.

2- DO DIREITO:
2.1. DO DIREITO APLICÁVEL ÀS IRREGULARIDADES ADMINISTRATIVAS:
A Associação de Amigos dos Autistas de Ribeirão Preto – AMA/RP é pessoa jurídica de direito privado, que tem entre suas finalidades atendimento educacional e terapêutico às pessoas portadoras de autismo e para o desenvolvimento de suas atividades conta com recursos obtidos do quadro associativo, doações de terceiros e subvenção do poder público.
Na qualidade de prestadora de serviços educacionais e de saúde, embora constituída como pessoa jurídica de direito privado, a AMA/RP tem atividade pública, vez que tais serviços têm natureza eminentemente pública e são originalmente atribuídos ao Estado, de modo que o particular atua mediante autorização e convênio. É o que se depreende das disposições dos artigos 196, 199, § 1º, 205 e 209, da Constituição Federal[3].
A respeito do tema, o subscritor desta inicial, em trabalho de conclusão de curso de mestrado[4], asseverou:
À evidência, quando uma entidade privada, por delegação do poder público, passa a exercer um serviço público, fica submetida ao controle do delegante e, ainda, ao regime jurídico que disciplina a atividade pública, inclusive no que tange à responsabilidade por danos patrimoniais e extrapatrimoniais causados ao particular.
...Melhor especificando, as entidades privadas de ensino estão sob o império dos princípios constitucionais que norteiam a educação no país; sujeitam-se às disposições das Leis 9.394 , de 20 de dezembro de 1996; 9.131, de 24 de novembro de 1995; 9.192, de 21 de dezembro de 1995 e de outros atos emitidos por autoridades da educação (decretos, portarias e resoluções), no seu relacionamento de vinculação ao poder público e ao art. 37, § 6º, da Constituição Federal no que concerne à responsabilidade por danos extracontratuais causados a terceiros.

Assim, como prestadora de serviços públicos e beneficiária de verba pública, destinada pela municipalidade, através de convênio, a administração da AMA/RP deve se pautar pelos mesmos princípios que norteiam a administração pública, a legalidade, a impessoalidade e a moralidade (art. 37, caput, da Constituição Federal).
As irregularidades que se verificaram no âmbito administrativo da AMA/RP, narradas no item 1.1 desta inicial, revelam flagrante violação à legalidade, à moralidade e à impessoalidade.
De fato, ao prestar declarações falsas à Promotoria de Justiça para o fim de obtenção de guarda ou curatela de pessoas que possuíam representantes legais, a AMA/RP, por suas dirigentes e prepostas, praticou ato que, em tese, tipifica o crime de falsidade ideológica, previsto no art. 299, do Código Penal.
No mesmo contexto, ao noticiar que aqueles alunos, para os quais se pretendia obter guarda ou tutela, eram órfãos e provinham de hospitais e albergues, a AMA/RP praticou grave violação à honra subjetiva e à imagem de tais pessoas e seus familiares. Esse fato pode dar ensejo à reparação moral, em ação própria de iniciativa dos ofendidos, por força do que dispõe o art. 5º, X, da Constituição Federal.
Além disso, ficou evidenciado que a AMA/RP obteve e recebeu, indevidamente, benefício de prestação continuada em nome de aluno, cujos pais sequer conheciam a circunstância do pedido haver sido formulado perante o INSS. E mais, conseguiu o mesmo benefício em favor de Leonardo Verdi Alarcon, filho da coordenadora geral Maria Cristina B. Verdi, que jamais preencheria os requisitos para a consecução do mencionado favor legal. Consoante já se registrou, nos termos da Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993, artigo 20, § 3º, exige-se para a obtenção do benefício de prestação continuada que a renda familiar da pessoa portadora de deficiência não pode ser superior a ¼ (um quarto) do salário mínimo, e a Sra. Maria Cristina, na qualidade de coordenadora geral da AMA/RP, recebe salário mensal superior a cinco salários mínimos. Esses fatos podem tipificar, além do crime previsto no art. 299, do Código Penal, o ilícito estampado no art. 171, do mesmo estatuto.
E não se diga que toda a responsabilidade pelos fatos deve ser atribuída à Sra. Marinalva Lanzoni Chaves, que era a funcionária designada para cuidar da obtenção dos referidos benefícios. Conforme já se verberou, a Sra. Marinalva possuía procuração, por instrumento público, outorgada pela presidenta da entidade, a Sra. Maria do Carmo de Almeida Sampaio Lacerda, com poderes para “protocolar, assinar e administrar o benefício de prestação continuada” (fls. 11, do IC. 361.1.146.8/02).
O indigitado instrumento de mandato traduz verdadeira confissão de improbidade, pois se os alunos da AMA/RP possuem representantes legais, como ficou demonstrado, não haveria necessidade da entidade se movimentar para receber o benefício em favor dos autistas. As famílias que fizessem jus ao direito poderiam faze-lo. Além disso, a procuração se refere à administração dos benefícios. Ora, se os benefícios eram devidos aos alunos, caberia a seus representantes legais a administração e não à AMA/RP.
Tudo indica, assim, que o objetivo das administradoras da entidade era, de fato, obter os benefícios à revelia dos representantes legais dos alunos. Certamente, o valor percebido seria objeto de apropriação, como se verificou no caso do menor Diego Rangel.
A responsabilização civil da AMA/RP, caso reclamada pelos pais dos alunos que tiveram seus nomes utilizados na narrada fraude, ainda que não demonstrado o dolo, situação que parece afastada pelo intuito de obtenção do benefício expresso na procuração outorgada à Sra. Marinalva Lanzoni Chaves, estaria facilmente configurada nos termos do art. 1521, III, do Código Civil[5], que proclama a chamada culpa in eligendo.
Outro fato inconcebível, que conspira contra os princípios da legalidade, moralidade e impessoalidade está assentado na perseguição que a direção da AMA/RP impõe aos pais de alunos que se interessam pelos assuntos administrativos da instituição. Conforme se narrou anteriormente, pessoas foram excluídas sumariamente do quadro associativo, sem direito a exercer defesa, por haverem se insurgido contra a administração. Na mesma linha de conduta, negou-se vaga ao filho de pessoa que questionava a lisura da administração da entidade, em notória violação ao princípio da igualdade de acesso ao ensino, proclamado pelo art. 206, I, da Constituição Federal.
De qualquer modo, não se pode conceber que a entidade, prestadora de relevantes serviços públicos, beneficiada com verba pública, seja administrada por pessoas que praticam atos revestidos de ilegalidade e imoralidade.
Os atos de improbidade anteriormente narrados justificam, de pleno direito, a cassação do mandato da presidenta e o afastamento da coordenadora geral, pessoas que se constituem nas máximas mandatárias da entidade.

2.2. DO DIREITO APLICÁVEL ÀS IRREGULARIDADES PEDAGÓGICAS:
A utilização pela AMA/RP de métodos pedagógicos que implicam em imposição de castigos e de técnicas aversivas na educação e terapia de autistas é ilegal e antiética, consistindo verdadeira agressão à dignidade das pessoas submetidas a essas práticas.
Os métodos educativos que envolvem imposição de castigos, conforme bem observado no parecer elaborado pela AMA/Capital (fls. 197 a 210, do IC. 532.1.234.8/02) de há muito foram abolidos no mundo ocidental, nos Estados democráticos e de direito.
A Declaração dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência da ONU – Resolução ONU 2.542/75 já dispunha :
“item 3) Às pessoas portadoras de deficiência assiste o direito inerente a todo o ser humano, de ser respeitado, sejam quais forem seus antecedentes, natureza e severidade de sua deficiência. Elas têm os mesmos direitos dos outros indivíduos da mesma idade, fato que implica em desfrutar de vida decente, tão normal quanto possível;
item 10) as pessoas portadoras de deficiência têm direito à proteção contra qualquer forma de exploração e de tratamento discriminatório, abusivo ou degradante”.

A Constituição Brasileira de 1988 proclamou, em seu art. 1º, III, a dignidade como um dos fundamentos da República.
Na linha de posicionamento do legislador constitucional, a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Infância e da Juventude) dispôs em seus arts. 3º, 5º, 15, 17 e 18:
“Art. 3º - A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
Art. 5º- Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.
Art. 15- A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade, como pessoa humana em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis.
Art. 17- O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais.
Art. 18- É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”.

No terreno específico da pessoa portadora de deficiência, a Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989 (Lei que dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência e sua integração social) preconizou em seus arts. 1º, § 1º e 2º:
“Art. 1º.
§ 1º- Na aplicação e interpretação desta Lei, serão considerados os valores básicos da igualdade de tratamento e oportunidade, da justiça social, do respeito à dignidade da pessoa humana, do bem-estar e outros, indicados na Constituição ou justificados pelos princípios gerais de direito.
Art. 2º- Ao Poder Público e seus órgãos cabe assegurar às pessoas portadoras de deficiência o pleno exercício de seus direitos básicos, inclusive dos direitos à educação, à saúde, ao trabalho, ao lazer, à previdência social, ao amparo à infância e à maternidade, e de outros que, decorrentes da Constituição e das leis, propiciem seu bem-estar pessoal, social e econômico”.

Ainda no campo da pessoa portadora de deficiência, especialmente daquelas portadoras de transtornos mentais, dispôs a Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001, em seu art. 2º, § único, II, III e VIII:
“Art. 2º- Nos atendimentos em saúde mental, de qualquer natureza, a pessoa e seus familiares ou responsáveis serão formalmente cientificados dos direitos enumerados no parágrafo único deste artigo.
§ único – São direitos da pessoa portadora de transtorno mental:
II- ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade;
III- ser protegida contra qualquer forma de abuso e exploração;
VIII- ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis”.

Observa-se de todo o complexo normativo colacionado que a pessoa portadora de deficiência, independentemente do grau de deficiência, assim como qualquer pessoa humana, deve ser tratada com respeito e dignidade. As pessoas portadoras de deficiência, por necessitarem de cuidados especiais e pelo fato de muitas vezes não estarem aptas a consentir, têm direito à ampla proteção, de modo que quando submetidas a processos terapêuticos ou educacionais devem ser preservadas de abusos ou de técnicas de que venham a impor sofrimento ou qualquer sensação de mal estar.
Desse modo, métodos terapêuticos ou pedagógicos que impliquem em imposição de castigos ou estímulos aversivos, geradores de sofrimento e mal estar são absolutamente ilegais, porque ofendem a dignidade da pessoa. A utilização do método aversivo no processo de ensino da pessoa portadora de autismo no atual estágio dos direitos humanos, constitucionalmente recepcionados, equivale, guardadas as proporções, à utilização da palmatória ou do ajoelhamento sobre grãos de milho, técnicas educativas sepultadas no final da década de 60.
A respeito do tema, vem à calhar os apontamentos de Antônio Rulli Neto[6]:
“Deve-se ter em mente que a evolução dos direitos da personalidade e o crescimento das formas de sua proteção abriram um caminho vasto para garantir, sempre, a integridade física, moral, psicológica etc., dos portadores de necessidades especiais.
O ato que viola um direito da personalidade viola a dignidade do ser humano, e a razão da existência do Estado é garantir o mínimo de dignidade às pessoas.
Assim, qualquer violação a direito da personalidade de portador de necessidades especiais, violação a sua dignidade, deve ser visto como mais grave. Isso, principalmente, por dois motivos: (a) a violação agride um sistema legal que visa a integrar o indivíduo portador de necessidades especiais, gerando não apenas este, mas outros eventuais preconceitos, ainda mais graves; (b) a superação do dano sofrido é mais difícil, até mesmo pela dificuldade já imposta pelo meio social”.

Como mencionado pelo Dr. Raymond Rosenberg no parecer de fls. 470 a 476, do IC. 532.1.234.8/02, a utilização de abordagem aversiva somente poderia ser concebida quando existente risco para a vida do autista e depois de esgotados todos os recursos. Inconcebível, em contrapartida, a aplicação de castigos e técnicas aversivas para conter gritos e outros comportamentos não convencionais que são peculiares às pessoas portadoras de autismo.
Tudo leva a crer que a utilização das malsinadas técnicas visavam preservar o bem-estar das pessoas que trabalham na AMA/RP e não propriamente dar educação e terapia ao autista, até porque, consoante se declinou nos trabalhos periciais elaborados a produção de sofrimento e sensação de mal estar podem levar o autista a se tornar arredio e agressivo.
O que se deve esperar de uma instituição cujo objetivo é oferecer terapia e educação a pessoa que padece de deficiência grave, como é o caso do autista, é que seja dotada de profissionais preparados e, sobretudo, sensíveis, empenhados em despender não apenas os seus conhecimentos técnicos, mas também amor, carinho e solidariedade.
O bem-estar e a felicidade da pessoa portadora de autismo devem estar acima de qualquer outro valor. É importante que o autista seja incluído no processo educacional, mas é fundamental que o seu aprendizado aconteça em circunstâncias que lhe proporcionem bem-estar e felicidade.
A reprovável conduta das responsáveis pela AMA/RP nos campos pedagógico e administrativo foi agravada, sobremaneira, pelo fato de haverem realizado experiências que importavam em imposição de sofrimento com alunos autistas sem o conhecimento e o consentimento dos representantes legais.
Na qualidade de prestadora de serviços educacionais, a AMA/RP é obrigada legalmente a informar aos representantes legais os métodos pedagógicos que estão sendo aplicados, e como prestadora de serviços terapêuticos, da mesma forma, é obrigada a informar as técnicas a serem utilizadas e a colher o consentimento de pais, tutores ou curadores.
Nesse sentido é o que dispõe o art. 53, § único, do Estatuto da Infância e da Juventude:
“Art. 53 –
§ único – É direito dos pais ou responsáveis ter ciência do processo pedagógico, bem como participar da definição das propostas educacionais.

A Resolução nº 196, de 10 de outubro de 1996, do Conselho Nacional de Saúde, que estabelece à luz dos quatro referenciais básicos da bioética (autonomia, não maleficência, beneficência e justiça) as diretrizes para pesquisa envolvendo seres humanos, proclama, da mesma forma, a necessidade de informação e consentimento acerca de procedimentos a serem empregados. Diz o item II.11:
“II.11 – Consentimento livre – anuência do sujeito da pesquisa e/ou de seu representante legal, livre de vícios (simulação, fraude ou erro), dependência, subordinação, ou intimidação, após explicação completa e pormenorizada sobre a natureza da pesquisa, seus objetivos, métodos, benefícios previstos, potenciais riscos e o incômodo que esta possa acarretar, formulada em um termo de consentimento, autorizando sua participação voluntária na pesquisa.

O certo é que tanto a utilização do método aversivo, legalmente reprovável , como a omissão de informações e prévia colheita de consentimento dos representantes legais evidencia o despreparo e autoritarismo das coordenadoras geral e pedagógica e da presidenta da AMA/RP, o que justifica a intervenção judicial, para se oferecer proteção aos autistas atendidos pela entidade, com a decretação do afastamento de tais pessoas dos cargos de direção e coordenação que ocupam e a nomeação de profissional especializado em educação especial, indicado pela Secretaria Municipal de Educação para reorganização administrativa e pedagógica da instituição.
É imperioso, ainda, para que fatos como os que foram narrados nesta inicial jamais voltem a ocorrer, que se condene a AMA/RP a se abster de utilizar métodos pedagógicos que envolvam a imposição de castigos e estímulos aversivos, sob pena de multa, a ser recolhida para o Fundo de Reparação dos Interesses Difusos Lesados, a que se refere o art. 13, da Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985 (lei que disciplina a ação civil pública).

3- DA NECESSIDADE DE DEFERIMENTO DE MEDIDA LIMINAR:
O art. 12, da Lei nº 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública) autoriza a concessão de medida liminar, com ou sem justificação prévia, nos próprios autos da ação civil pública, sem a necessidade de se ajuizar ação cautelar (neste sentido veja-se RJTJSP 113/312).
Os requisitos para a concessão de liminar facilmente se vislumbram do já exposto. O fumus boni juris, sem um prejulgamento do mérito, se consubstancia em um juízo de probabilidade, razoavelmente demonstrado, das irregularidades administrativas e pedagógicas praticadas pelas co-rés Maria do Carmo de Almeida Sampaio Lacerda Ferraz, Cristina Bonassoli Verdi e Camila Góes Sampaio do Amaral, presidenta, coordenadora geral e coordenadora técnica da AMA/RP, respectivamente. As duas primeiras estão diretamente envolvidas nas irregularidades administrativas anteriormente narradas, consistentes no procedimento engendrado para indevida percepção de benefícios de prestação continuada em nome de alunos da AMA/RP. A última foi a mentora dos reprováveis e ilegais métodos de imposição de castigo e estímulos aversivos aplicados em alunos autistas atendidos pela entidade. Para a aplicação de tais métodos concorreram também a presidenta e a coordenadora geral, que prestaram assentimento às práticas atentatórias contra a dignidade e o bem-estar dos alunos. As provas colhidas nos inquéritos civis que instruíram a inicial são incisivas e não rendem ensejo a dúvidas quanto as irregularidades administrativa e pedagógica e sua autoria.
Não há como se negar, por mais perfunctória que seja a análise dos dispositivos invocados pela Promotoria de Justiça quando da abordagem do mérito, que as co-requeridas estão se comportando de modo a transgredir o ordenamento jurídico, tanto no que respeita ao procedimento desencadeado para a indevida percepção de benefícios previdenciários em nome de alunos autistas, que contém indícios veementes de improbidade administrativa, como no que pertine à violação de normas de proteção à pessoa portadora de deficiência, com ofensa à dignidade e ao bem estar de pessoas autistas.
Inescondível, de outra parte, o periculum in mora, pois a se esperar decisão final de mérito, prejuízos irreparáveis e irreversíveis já terão sido suportados pela comunidade de pessoas autistas atendida pela AMA/RP, que continuará exposta a métodos pedagógicos proibidos por lei, inadequados, ineficientes e que podem causar sofrimento, mal-estar e ofensa à dignidade dos alunos. Demais disso, a AMA/RP permanecerá sob a administração de pessoas que não pautam sua conduta pelos princípios da legalidade, moralidade e impessoalidade; que administram de forma autoritária, sem a transparência que se deve esperar de entidade que presta serviço público, recebendo para tanto subvenção financeira do poder público e que se envolvem em procedimentos fraudulentos para a percepção indevida de benefícios previdenciários.
É importante que a AMA/RP, instituição de grande relevo para a comunidade ribeiropretana, retome credibilidade administrativa e pedagógica e para isso é imprescindível que as co-rés sejam afastadas dos cargos que ocupam, de modo que se possa nomear interventor da Secretaria Municipal de Educação, órgão ao qual incumbe autorizar a prestação de serviços de educação especial e fiscalizar a atuação da entidade. Com o afastamento da presidenta, por força do que dispõe o art. 24, do estatuto social da entidade (fls. 108, do IC. 532.1.234.08/02), deve assumir o cargo a vice-presidenta, Sra. Marta Conceição Tosta de Freitas (fls. 100, do mesmo IC), até decisão definitiva e respeitado o período do mandato atual. A coordenação pedagógica e a coordenação geral devem ficar a cargo de profissional a ser indicado pela Secretária Municipal de Educação do Município de Ribeirão Preto, pelo período que for necessário para reestruturação pedagógica da entidade.
Vale observar que em razão das irregularidades noticiadas na presente inicial a Secretaria Municipal de Educação não está repassando, desde junho do corrente ano, a subvenção devida à AMA/RP por força de convênio firmado com a Municipalidade (fls. 547, do IC. 361.1.146.8/02). A perda da mencionada receita pode prejudicar o funcionamento da entidade e o atendimento às pessoas autistas. Certamente, com a retomada da normalidade administrativa da instituição, a mencionada verba deverá ser liberada.
O que importa, enfim, é que a AMA/RP possa voltar a prestar às pessoas autistas por ela atendidas serviços educacionais e terapêuticos de boa qualidade. Para isso é necessário que a entidade seja administrada com seriedade, lisura, transparência e de forma democrática, aberta para a pluralidade de idéias do quadro associativo. É imperioso, também, que a entidade se valha de métodos pedagógicos modernos, não invasivos, que possam oferecer ao autista aprendizado, terapia, bem-estar e felicidade.
A concessão da medida liminar pleiteada é, pois, de rigor.

4- DA LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA A PROPOSITURA DA VERTENTE AÇÃO CIVIL PÚBLICA:
A legitimidade do Ministério Público para a propositura da vertente ação está amparada na Constitição Federal; na Lei Federal nº 7.347, de 24 de julho de 1985 (Lei da Ação Civil Pública); na Lei Federal 8.625, de 12 de fevereiro de 1993 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público) e na Lei Federal nº 7.853, de 24 de outubro de 1989 (Lei que dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência, sua integração social, sobre a Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência – Corde, institui a tutela jurisdicional de interesses coletivos ou difusos dessas pessoas, disciplina a atuação do Ministério Público e define crimes).
Insta dizer:
Com o advento da Constituição Federal de 1988, o campo de atuação da Ação Civil Pública para a proteção dos chamados direitos transindividuais, instituída pela Lei Federal nº 7.347/85, para cuja propositura se legitimou o Ministério Público, foi alargado, com a inclusão dos interesses coletivos (“ex vi” do disposto no art. 129, inciso III, da C.F.).
No campo específico da proteção à pessoa portadora de deficiência, a Lei nº 7.853/89 trouxe expressa previsão da possibilidade de ajuizamento de ação civil pública para defesa de interesses na órbita coletiva ou difusa e atribuiu legitimidade ao Ministério Público para a propositura da medida.
Ao depois, a Lei 8.625/93 (Lei Orgânica Federal do Ministério Público) consolidou a legitimidade do Parquet para o ajuizamento de ação civil pública em defesa de interesses metaindividuais.
Vala trazer à colação o complexo normativo mencionado.
É da Constituição Federal:
Art. 129 - São funções institucionais do Ministério Público:
III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;

Diz a Lei nº 7.347/85:
Art. 1º - Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados:
IV – a qualquer outro interesse difuso ou coletivo;

Prescreve a Lei nº 7.853/89, diploma legal protetivo às pessoas portadoras de deficiência:
Art. 3º - As ações civis públicas destinadas à proteção de interesses coletivos ou difusos das pessoas portadoras de deficiência poderão ser propostas pelo Ministério Público, pela União, Estados, Municípios, Distrito Federal; por associação constituída há mais de 1 (um) ano, nos termos da lei civil, autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista que inclua entre suas finalidades institucionais a proteção das pessoas portadoras de deficiência.

Por fim, dispõe a Lei Orgânica Federal do Ministério Público:
Art. 25 - Além das funções previstas nas Constituições Federal e Estadual, na Lei Orgânica e em outras leis, incumbe, ainda, ao Ministério Público:
IV - promover inquérito civil e a ação civil pública, na forma da lei:
a) para proteção, prevenção e reparação de danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, paisagístico, e a outros interesses difusos, coletivos e individuais indisponíveis e homogêneos.

Como se percebe, portanto, é o Ministério Público legitimado para a propositura de ação civil pública, e, por conseqüência, de medidas cautelares suficientes ao seu resguardo, para a tutela de todos os interesses transindividuais, divisíveis ou não, previstos em lei. Especificamente no caso em estudo, a ação civil pública tem por escopo a proteção dos interesses da coletividade de pessoas portadoras de autismo atendida pela AMA/RP, que está exposta a métodos pedagógicos que envolvem a imposição de castigos e estímulos aversivos, incompatíveis com todo o complexo normativo, constitucional e infraconstitucional de proteção à personalidade humana e que, além disso, freqüentam entidade que padece de administração defeituosa, permeada por abusivo autoritarismo e por atos de improbidade. Trata-se, destarte, da defesa de interesse coletivo, caracterizado pelo fato de pertencer a grupo específico e por sua indivisibilidade.

5- DOS PEDIDOS:
Em face de todo o exposto, requer:
1) A concessão de medida liminar, inaudita altera pars, independentemente de justificação prévia, para se determinar o afastamento das Sras. Maria do Carmo de Almeida Sampaio Lacerda Ferraz, Maria Cristina Bonassoli Verdi e Camila Góes Sampaio do Amaral dos cargos de presidenta, coordenadora geral e coordenadora técnica, respectivamente, exercidos junto a AMA/RP, até julgamento definitivo da ação, devendo, por conseguinte, assumir a presidência da entidade, interinamente, respeitado o período de mandato vigente, a vice-presidenta Sra. Marta Conceição Tosta de Freitas;
2) em conseqüência do deferimento da liminar pleiteada no item anterior, que se determine à Secretaria Municipal de Educação a indicação de profissional habilitado em educação especial, dos seus quadros, para assumir a coordenação técnica da AMA/RP, até julgamento definitivo da ação ou pelo período que for necessário, visando a reorganização pedagógica da entidade, com a implementação de métodos eficazes que visem prestigiar o aprendizado e o bem-estar da pessoa autista e que se pautem pelo absoluto respeito à dignidade da pessoa atendida.
3) a citação de todas as requeridas para, querendo, contestar a presente ação, sob pena de revelia;
4) ao final, a decretação de integral procedência da ação para o fim de :
a) se decretar o afastamento definitivo das Sras. Maria do Carmo de Almeida Sampaio Lacerda Ferraz, Maria Cristina Bonassoli Verdi e Camila Góes Sampaio do Amaral dos cargos de presidenta, coordenadora geral e coordenadora técnica, respectivamente, exercidos junto a AMA/RP, com a imposição de inelegibilidade para ocupação de cargos na entidade, pelo período de 8 (oito) anos, bem como a proibição de exercício de cargos remunerados na instituição, pelo mesmo período.
b) se condenar a AMA/RP à obrigação de se abster de utilizar métodos pedagógicos que impliquem em imposição de castigos, estímulos aversivos ou outros que acarretem sofrimento à pessoa autista, sob pena de multa de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), a ser recolhida ao Fundo de Reparação de Interesses Difusos Lesados, conta nº 43.00074-8, do Banespa, agência 248, Liberdade, São Paulo, para cada ocorrência que revele descumprimento da obrigação;
5- a condenação das rés ao pagamento das custas processuais;
6- a dispensa do pagamento de custas, emolumentos e outros encargos, desde logo, à vista do disposto no artigo 18, da Lei nº 7.347/85.
Protesta por provar o alegado por todos os meios de prova admitidos em direito, especialmente pela produção de prova oral e pericial, e, se necessário, pela juntada de novos documentos e tudo o mais que objetivar a completa elucidação e demonstração dos fatos articulados na presente inicial.
Dá-se à causa, por estimativa, o valor de R$ 100,00 (cem reais).
Termos em que,
pede deferimento.
Ribeirão Preto, 02 de dezembro de 2002.


CARLOS CEZAR BARBOSA PROMOTOR DE JUSTIÇA


---------------------------------
[1] Classificação Internacional de Doenças (CID 10) – Organização Mundial de Saúde.
[2] Art. 20 – O benefício de prestação continuada é a garantia de 1 (um) salário mínimo mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso com 70 (setenta) anos ou mais e que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção e nem de tê-la provida por sua família.
§ 3º - Considera-se incapaz de prover a manutenção de pessoa portadora de deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a ¼ (um quarto) do salário mínimo.
[3] Art. 196 – A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Art. 199 – A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.
§ 1º - As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.
Art. 205 – A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Art. 209 – O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições:
I – cumprimento das normas gerais de educação nacional;
II – autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público.
[4] BARBOSA. Carlos Cezar. Responsabilidade Civil do Estado e das Instituições Privadas nas Relações de Ensino. Dissertação de Mestrado. Ribeirão Preto: 2002.
[5] Art. 1521. São também responsáveis pela reparação civil:
III- o patrão, amo ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou por ocasião dele;
[6] RULLI NETO, Antônio. Direitos do portador de necessidades especiais. São Paulo: Fiúza Editores, 2002, p. 60.

Fonte: S.n.t.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

LEGALIZAÇÃO DO ABORTO SERÁ RETIRADA DO PROGRAMA


O ministro da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, Paulo Vannuchi, disse hoje que o projeto que descriminaliza o aborto deve ser abandonado pelo governo e não fará mais parte do Programa Nacional de Direitos Humanos. O ministro reconheceu que a causa é uma bandeira histórica do movimento feminista, mas disse que a legislação só pode ser alterada por meio de decreto presidencial.


"Definitivamente ficou claro que o presidente Lula não concorda com essa formulação e o assunto se encerra já por aí, pois só pode ser alterado por decreto presidencial", afirmou o ministro, que visitou a Campus Party, encontro mundial de comunidades e redes sociais da internet realizado em São Paulo.


Vannuchi afirmou que o governo deve fazer um debate sobre o assunto nas próximas semanas com a participação de representantes da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e integrantes de outras entidades civis.


"Precisamos de um consenso maior", declarou. "Essa formulação não teve consenso e será corrigida." O ministro não revelou de que forma essa alteração será feita. "Pode ser que se altere apenas uma linha", disse, referindo-se ao texto do Programa Nacional de Direitos Humanos.


Preconceito


O ministro afirmou que existe atualmente "o melhor e o pior momento" dentro do governo. Segundo ele, a divulgação do conteúdo do programa ampliou o debate sobre os direitos humanos no País, o que ele considera um ponto positivo. Por outro lado, suscitou um "pensamento antidireitos humanos preconceituoso que apareceu muito fortemente".


Vannuchi disse que não reagirá no mesmo tom às críticas que recebeu nas últimas semanas, entre as quais de que seria um "psicopata ideológico, terrorista e maluco". Ele refutou ainda a tese de que o governo recuou no tema dos direitos humanos, com receio de que a polêmica atrapalhe a campanha da provável candidata petista à Presidência da República, a ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff.


"É uma incompreensão", afirmou. "Não há nada que atrapalhe Dilma, pelo contrário. Debate sobre combate à tortura e democratização dos meios de comunicação só fortalece o processo eleitoral e os candidatos do PT."

Disponível em: http://noticias.br.msn.com/artigo.aspx?cp-documentid=23361650
Acesso em: 29.01.10

COMPETÊNCIA PARA JULGAMENTO DE CRIME MILITAR DOLOSO CONTRA A VIDA

Damásio de Jesus
Novembro/2007
Os crimes militares dolosos contra a vida estão definidos nos arts. 205, 207 e 208 do Código Penal Militar (CPM), Decr.-lei n. 1.001/69, com a seguinte redação:
“Homicídio simples
Art. 205. Matar alguém:
Pena – reclusão, de seis a vinte anos.
Minoração facultativa da pena
§ 1.º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o Juiz pode reduzir a pena, de um sexto a um têrço.
Homicídio qualificado
§ 2.º Se o homicídio é cometido:
I – por motivo fútil;
II – mediante paga ou promessa de recompensa, por cupidez, para excitar ou saciar desejos sexuais, ou por outro motivo torpe;
III – com emprêgo de veneno, asfixia, tortura, fogo, explosivo, ou qualquer outro meio dissimulado ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum;
IV – à traição, de emboscada, com surprêsa ou mediante outro recurso insidioso, que dificultou ou tornou impossível a defesa da vítima;
V – para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime;
VI – prevalecendo-se o agente da situação de serviço:
Pena – reclusão, de doze a trinta anos.
[...]
Provocação direta ou auxílio a suicídio
Art. 207. Instigar ou induzir alguém a suicidar-se, ou prestar-lhe auxílio para que o faça, vindo o suicídio consumar-se:
Pena – reclusão, de dois a seis anos.
Agravação de pena
§ 1.º Se o crime é praticado por motivo egoístico, ou a vítima é menor ou tem diminuída, por qualquer motivo, a resistência moral, a pena é agravada.
Provocação indireta ao suicídio
§ 2.º Com detenção de um a três anos, será punido quem, desumana e reiteradamente, inflige maus tratos a alguém, sob sua autoridade ou dependência, levando-o, em razão disso, à prática de suicídio.
Redução de pena
§ 3.º Se o suicídio é apenas tentado, e da tentativa resulta lesão grave, a pena é reduzida de um a dois têrços.
Genocídio
Art. 208. Matar membros de um grupo nacional, étnico, religioso ou pertencente a determinada raça, com o fim de destruição total ou parcial dêsse grupo:
Pena – reclusão, de quinze a trinta anos.
Casos assimilados
Parágrafo único. Será punido com reclusão, de quatro a quinze anos, quem, com o mesmo fim:
I – inflige lesões graves a membros do grupo;
II – submete o grupo a condições de existência, físicas ou morais, capazes de ocasionar a eliminação de todos os seus membros ou parte dêles;
III – força o grupo à sua dispersão;
IV – impõe medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;
V – efetua coativamente a transferência de crianças do grupo para outro grupo.”
O julgamento de todos os crimes militares é de competência exclusiva da Justiça Militar, nos termos dos arts. 124 e 125, §§ 3.º a 5.º, da Constituição Federal (CF).
Quando o agente for integrante das Forças Armadas, o julgamento ficará a cargo da Justiça Militar Federal; quando, entretanto, tratar-se de membro da Polícia Militar ou do Corpo de Bombeiros Militar, da Justiça Militar Estadual.
De ver-se que a Justiça Militar Federal tem autorização constitucional (implícita) para julgar civis (autores de crimes militares). O mesmo não ocorre, contudo, com a Justiça Militar Estadual (veja Súmula n. 53 do STJ).
Até o advento da Lei n. 9.299/96, o crime militar doloso contra a vida ou, em outras palavras, o crime doloso contra a vida cometido por militar, fosse a vítima civil ou militar, era de competência da Justiça Castrense. Cuidando-se de sujeito ativo integrante das Forças Armadas, o fato era julgado pela Justiça Militar Federal. Caso se tratasse de membro da Polícia Militar ou do Corpo de Bombeiros Militar, a competência era da Justiça Militar Estadual (veja arts. 124 e 125 da CF).
A Lei n. 9.299/96 determinou que crimes dolosos contra a vida cometidos por militares contra civis passassem a ser julgados pelo Tribunal do Júri. Houve quem dissesse que a lei, ao transferir ao Júri a competência para julgamento de crimes militares, mostrava-se inconstitucional. Não pensamos assim, uma vez que a interpretação correta a ser dada, teleológica e não puramente gramatical, revela que a lei passou a considerar comuns esses delitos. Em outras palavras, não se trata de determinar o julgamento de crimes militares pela Justiça Comum, mas da modificação da natureza do delito, que de militar passou a ser considerado comum e, portanto, de competência da Justiça Comum (Estadual ou Federal). Note-se que o critério utilizado no Brasil para a definição de crimes militares é o ratione legis, isto é, considera-se crime militar aquele descrito pela lei como tal.
Quando a Lei n. 9.299/96 entrou em vigor, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) passou a decidir que ela deveria ter aplicação imediata, atingindo, inclusive, processos em andamento, salvo se houvesse decisão de mérito (ainda que não transitada em julgado).
A Emenda Constitucional n. 45, de 8 de dezembro de 2004, modificou os parágrafos do art. 125 da CF e incorporou ao Texto Maior a regra prevista na Lei n. 9.299/96. Pode-se dizer, então, que a competência para julgamento de crimes militares dolosos contra a vida é de natureza constitucional:
“Art. 125. [...]
[...]
§ 4.º Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao Tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças.”
Em suma, as regras de competência são as seguintes:
Crime doloso contra a vida cometido por militar:
a) se a vítima for civil – Tribunal do Júri;
b) se a vítima for militar – Justiça Militar (Federal ou Estadual, conforme o caso envolva interesses das Forças Armadas ou das instituições militares estaduais).
O Supremo Tribunal Federal (STF), em 2002, entendeu que o crime doloso contra a vida cometido por militar contra militar, ainda que fora das dependências militares, deve ser julgado pela Justiça Castrense:
“Julgando conflito de competência suscitado pelo STM em face do STJ, o Tribunal, por maioria, com fundamento no art. 9.º, II, ‘a’, do Código Penal Militar, assentou a competência da Justiça Militar para o julgamento de crime de homicídio cometido por militar, em face de outro militar, ocorrido fora do local de serviço. Considerou-se que, embora o homicídio tenha ocorrido na casa dos envolvidos, por motivos de ordem privada, subsiste a competência da Justiça Militar porquanto qualquer crime cometido por militar em face de outro militar, ambos em atividade, atinge, ainda que indiretamente, a disciplina, que é a base das instituições militares. Vencidos os Ministros Sepúlveda Pertence, Celso de Mello e Marco Aurélio, que assentavam a competência da Justiça Comum para o julgamento da espécie (CPM, art. 9.º: ‘Consideram-se crimes militares, em tempo de paz: [...] II – os crimes previstos neste Código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum, quando praticados: a) por militar em situação de atividade ou assemelhado, contra militar na mesma situação ou assemelhado;’). Precedentes citados: RE n. 122.706/RJ (RTJ 137/408) e CJ n. 6.555/SP (RTJ 115/1095).” (STF, Plenário, CC n. 7.071/RJ, rel. Min. Sydney Sanches, j. em 5.9.2002, Informativo STF n. 280).
Em maio de 2007, o STF julgou competir à Justiça Militar Federal o julgamento de civil autor de homicídio contra militar:
“A Turma, por maioria, indeferiu habeas corpus em que se alegava a incompetência da justiça militar para processar e julgar civil denunciado por homicídio qualificado praticado contra militar, que se encontrava de sentinela em posto de vila militar, com o propósito de roubar-lhe a arma. Pleiteava-se, na espécie, a nulidade de todos os atos realizados pela justiça castrense, ao argumento de ser inconstitucional o art. 9.º, III, do CPM, por ofensa ao art. 5.º, XXXVIII, da CF (Tribunal do Júri). Entendeu-se que, no caso, a excepcionalidade do foro castrense para processar e julgar civis que atentam dolosamente contra a vida de militar apresenta-se incontroversa. Tendo em conta o que disposto no art. 9.º, III, ‘d’, do CPM (‘Art. 9.º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz: [...] III – os crimes praticados por [...] civil [...]: d) [...] contra militar em função de natureza militar ou no desempenho de serviço de vigilância [...]’), asseverou-se que, para se configurar o delito militar de homicídio, é necessário que a vítima esteja efetivamente exercendo função ou desempenhando serviço de natureza militar, não bastando a sua condição de militar. Assim, considerou-se que, no caso, estariam presentes quatro elementos de conexão militar do fato: a) a condição funcional da vítima, militar da aeronáutica; b) o exercício de atividade fundamentalmente militar pela vítima, serviço de vigilância; c) o local do crime, vila militar sujeita à administração militar e d) o móvel do crime, roubo de arma da Força Aérea Brasileira – FAB. Vencido o Min. Marco Aurélio que deferia o writ por não vislumbrar, na hipótese, exceção à regra linear da competência do Tribunal do Júri para julgar crime doloso contra a vida praticado por civil. Precedentes citados: RHC n. 83.625/RJ (DJU de 28.5.1999); RE n. 122.706/RJ (DJU de 3.4.1992).” (STF, 1.ª T., HC n. 91.003/BA, relatora Ministra Cármen Lúcia, j. em 22.5.2007, Informativo STF n. 468).
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JESUS, Damásio de. Competência para julgamento de crime militar doloso contra a vida. São Paulo: Complexo Jurídico Damásio de Jesus, nov. 2007.