Pesquisar este blog

quarta-feira, 31 de março de 2010

COMO FAZER UM ARTIGO CIENTÍFICO JURÍDICO

Silvania Mendonça Almeida

As orientações são as seguintes:

Em primeiro lugar se deve pensar no tema como eixo norteador.

A seguir os passos relevantes, que se asseveram a seguir:


-A pesquisa do marco teórico, podendo ser composta de leis, jurisprudências e doutrinas

- Resumo e palavras-chave: Estruturação pequena do artigo e as palavras-chave como o próprios nomes são descritores ou indicadores do artigo.

- Introdução; Apresenta-se neste espaço o tema e sua relevância

- Desenvolvimento: que pode ser dividido em subtemas, relacionando o marco teórico
pesquisado

Considerações finais: sobre tudo o que foi apresentado no desenvolvimento, de forma sintética, retirando as idéias principais conclusivas.

E finalmente

REFERÊNCIAS COMO ELEMENTO PÓS-TEXTUAL

BOA SORTE

A FILOSOFIA DO DIREITO E A INTERNET

Amadeu dos Anjos Vidonho Junior

Advogado, Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela – UNESA
Pós Graduando em Direito Tributário e Legislação de Impostos - UNESA
Mestre em Filosofia do Direito pela UFPa
Professor de Direito da Universidade Federal do Pará – UFPa
Professor convidado da Escola Superior de Advocacia ESA/OAB/PA
Autor





Sumário: 1.0 A Filosofia do Direito e a Internet. 1.1 O Novo Desafio da Filosofia do Direito e a Internet. O Jurisfilósofo do Século XXI. Conclusão.










1.0_A FILOSOFIA DO DIREITO E A INTERNET


Sumário: 1.0 A Filosofia do Direito e a Internet. 1.1 Introdução. 1.2 O Novo Desafio da Filosofia do Direito e a Internet. 1.3 O Jurisfilósofo do Século XXI. 1.4 Conclusão.

“Navegar é Preciso,
Viver não é preciso.”
In “Navegar é Preciso” – Fernando Pessoa

1.1 _Introdução

A evolução acertou o ser humano a ponto de torna-lo completamente dependente, mas adaptável ao seu meio. A revolução de conhecimentos e informações chega tal como uma onda e seu movimento cíclico imposto pelos ventos. Mas em épocas atrás ao modo dessas, já se almejava os resultados da evolução a que hodiernamente chegamos.

O responsável por isso é sem dúvida o homem, para quem todo o conhecimento serve e deve convergir, pois não se pode admitir tutelas que não as de escopo humanista, pois toda a vida só ao homem interessa. Assim também o conhecimento, por conta disto a espécie perseverou, e venceu os estágios históricos até a modernidade.

Todo o conhecimento deve ter um fim, e uma finalidade em favor da preservação do homem e seu meio, pois nada mais interessa senão a permanência do homem no planeta terra. Mas o que os homens fizeram ou estão fazendo para que isso se torne uma realidade? Será mesmo o que se está fazendo, promove a adaptação social do homem ao seu meio ambiente?

Ao acordar, o homem passeia por milhares de informações distribuídas em seu dia, até chegar ao sono que o ajuda a renová-las. A partir daí, o homem deste século não é mais o homem que sobreviveu no século passado, e assim por diante, necessita sobremaneira não mais da visão individualista como, aliás, concebiam os Sofistas , a qual se reduzia a seu ambiente próximo; mas da visão de mundo. Hoje, para se estudar um fenômeno jurídico não nos ocupamos com apenas o fato em si, mas também, com os outros fatos conexos, para que através de várias visões de vínculo, absorvamos o real significado do todo a que estamos envolvidos e assim podermos especular sobre as realidades a que nos propomos.

Então, simplesmente aportamos na “auto-reflexão do espírito sobre seu comportamento valorativo teórico e prático e, igualmente, aspiração a uma inteligência das conexões últimas das coisas, a uma visão racional de mundo” , por certo, ancoramos na filosofia. Para Johannes Hessen “a filosofia é a tentativa do espírito humano de atingir uma visão de mundo, mediante a auto-reflexão sobre suas funções valorativas teóricas e práticas” . Daí a imprescindível diferença entre as Ciências particulares e sua especialização, e a Filosofia com sua universalidade.

“Enquanto as ciências particulares tomam por objeto uma parte da realidade, a filosofia dirige-se à totalidade do real”. , muito embora não seja errado concebermos a Filosofia como muitos a denominam, de ciência universal.

Não obstante a isso, esta universalidade, podemos constatar pode ser encontrada hodiernamente com um simples clique do mouse, na Internet. Muito diferente das épocas antigas onde os filósofos, “amantes do saber”, viajavam incessantemente para divulgar oralmente suas idéias nas praças e logradouros públicos. Destes fatos, poucos restaram como prova de ensinamentos filosóficos, pois a oralidade impôs como método de estudo apenas as críticas e relatos registrados por outros filósofos, como é o caso das idéias dos Sofistas (século v A.C.) e de seu crítico, Sócrates (469 a 399 A. C.) .

Contudo, hoje com a Internet não se mostram mais os riscos de outrora: pesquisam-se, copiam-se, colam-se, citam-se, gravam-se e armazenam-se dados e idéias expostas no ciberespaço, informações imprescindíveis à criação. Este processo, que revolucionou a “Teoria do Conhecimento” enquanto doutrina da Ciência e, por conseguinte, da Filosofia, não pode permanecer aquém da segurança jurídica que toda sociedade deve inspirar. Deve eminentemente estar sob a regulamentação do direito, pois está a se firmar como um bem jurídico relevante ao homem, enquanto na busca de suas criações.

Dessa regulamentação jurídica é que vem a preocupação da relação entre a Internet, a Filosofia e a Filosofia do Direito, que nada mais é do que uma “projeção do saber filosófico no âmbito do direito” . Versa ainda o mesmo autor que a Filosofia do Direito “consiste na pesquisa conceptual do Direito e implicações lógicas, por seus princípios e razões mais elevados, e na reflexão crítico-valorativa das instituições jurídicas.”

Em todas essas realidades, Direito, Filosofia e Internet, impera o meio essencial para a criação e a experimentação: o pensamento.

1.2 _O Novo Desafio da Filosofia do Direito e a Internet.

DEL VECCHIO, professor da Universidade de Roma nos ensina que “A História da Filosofia é, por conseguinte, meio de estudo e de investigação, e, como tal, poderosa ajuda para o nosso trabalho: oferece-nos repositório de observações, de raciocínios, de distinções, que a um homem só, no decurso da vida, seria impossível ocorrer.”

Sem dúvida podemos afirmar modernamente que a Internet tal como a História da Filosofia “oferece-nos repositório de observações, de raciocínios, de distinções, que a um homem só, no decurso da vida, seria impossível ocorrer.”, e ainda mais, oferece-nos acesso à universalidade, onde podemos pesquisar e encontrar os pensamentos de todo o planeta. Perfect! É como exclamaríamos em dialeto Inglês.

A começar por este texto, que se inspirou no poema “Navegar é Preciso” extraído após breve busca através do navegador, e em alguns segundos pela home page, onde houve acesso a uma série de informações a respeito do autor e ainda suas obras completas, mesmo considerando ser hoje um domingo e a maioria das bibliotecas, fechadas.

Ora então a Internet é um eficiente meio de executar o pensamento e pesquisar idéias além da obtenção de uma universalidade de dados a que a só um homem não seria possível ocorrer, no decurso da vida.

A Internet é um dos meios modernos para se filosofar, e enquanto assim, possuidora de conhecimentos universais e dentre estes, também jurídicos, podendo ser concebida como ponto especulativo da epistemologia do conceito do Direito e assuntos afins e da axiologia das instituições jurídicas, que na concepção de Paulo Nader são verdadeiros objetos da Filosofia do Direito.

Por conclusão, o grande desafio da Filosofia do Direito e da Internet é a aproximação do filósofo, do jurista e do jurisfilósofo, para que por meio da Internet promovam através da crítica e da reflexão o aprimoramento das instituições jurídicas e logo sua evolução. Deve sem dúvida haver no ciberespaço maior troca de experiências a ponto de impedirmos a involução de idéias e ideais, pois operantes apenas vinculadas à época de sua concepção e nunca para todo o sempre.

“John Locke (1632-1704), filósofo inglês que publicou Ensaio sobre o entendimento Humano busca na experiência a fonte do conhecimento” , porquanto, uma experiência se de interesse para humanidade não serve apenas a um homem, mas a toda uma comunidade e porque não também aos internautas de todo o mundo?

1.3 _O Jurisfilósofo do Século XXI

Sobre a terminologia “jurisfilósofo” muito bem explica Paulo Nader que “De um modo geral, os jurisfilósofos foram, originariamente, juristas com formação filosófica.”

Porquanto, a vida e a cultura mudaram desde os primeiros filósofos que tiveram na Grécia, berço de concreta autonomia. No Brasil, particularmente, a filosofia teve seu período fosco passando várias décadas sem ocupar lugar relevante na sociedade, e talvez seja graças a esse lapso temporal que a ciência andou desgovernada até chegar no momento atual de rever todos seus pressupostos com vista à evolução.

A reflexão júris-filosófica conta hoje com um meio eficiente para a sua propagação, a Internet. E todos os jurisfilósofos que almejam chegar ao conhecimento universal sobre determinada realidade, devem dela extrair o conhecimento. Deve a Internet ser meio para o conhecimento e a reflexão sobretudo dos textos que os demais júrisfilósofos expõem à sociedade através dos web sites.

O Jurisfilósofo do século XXI está hodiernamente mais perto do que nunca do conhecimento universal, tão perto a ponto de sua separação significar um clique do mouse. Infelizmente, isso não ocorria com os grandes filósofos passados, que apenas tinham como objeto de reflexão os discursos orais em determinada praça.



1.4_CONCLUSÃO

O eminente poeta lisboeta Fernando Antônio Nogueira Pessoa (1888-1935), na sua época, já proclamava tendo em vista celebre frase usada por Pompeu (106-48 a.C.), dita aos marinheiros, amedrontados, que recusavam viajar durante a guerra, cf. Plutarco, in Vida de Pompeu : “Navigare necesse; vivere non est necesse” . Portanto, “Navegar é preciso, viver não é preciso”, mas a força da frase não é tão firme enquanto solta do restante dos versos que agora passamos a complementar:

“Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:

"Navegar é preciso; viver não é preciso".

Quero para mim o espírito [d]esta frase,
transformada a forma para a casar como eu sou:
Viver não é necessário; o que é necessário é criar.
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.
Só quero torná-la grande,
ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo.
Só quero torná-la de toda a humanidade;
ainda que para isso tenha de a perder como minha.
Cada vez mais assim penso.
Cada vez mais ponho da essência anímica do meu sangue
o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir
para a evolução da humanidade.
É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.”

Tão forte e perseverante são os verbos quanto adaptáveis à modernidade.

Hodiernamente, “navegar” é preciso! Mas também, podemos dizer em metáfora, pelos programas ou navegadores que permitem o acesso das informações disponibilizadas pela Internet. Transpondo-se ao ciberespaço, temos que para o internauta, navegar é preciso.

“Viver não é preciso”, pois a única forma de modificarmos o meio e a ele adaptarmo-nos é a criação, como mesmo esta foi o começo de tudo, porquanto o que é preciso é criar diz o poeta, com a nossa concordância, sendo que a Internet é poderosa ferramenta para tal.

Finalizando, é necessário citarmos também DEL VECCHIO, segundo o qual, “Os problemas filosóficos que hoje discutimos são fundamentalmente os mesmos que aos filósofos antigos se mostraram, ainda que de modo germinal ou embrionário.” , isto está a ocorrer de vez que, há muito salta dos pesquisadores apenas o amor ao direito, dissociado do “amor ao saber” que a filosofia nos propõe. E sem uma análise com vista à universalidade do Direito conjugado com a crítica filosófica e assim, pela Filosofia do Direito, não haverá evolução das idéias e aí o homem perderá espaço frente às novas problemáticas.

Contudo, hoje, bem longe do ontem, dispomos de um meio onde todos podem dissertar sobre o saber jurídico, dispomos do mais eficaz meio de comunicação e troca de conhecimentos, dispomos do melhor meio de filosofar como necessidade e intuito de criação, dispomos da Internet, pois, “não se consegue chegar ao Direito legítimo sem a reflexão filosófica.”

sábado, 27 de março de 2010

SENTENÇA CONDENATÓRIA DO CASAL NARDONI

Após cinco dias de julghamento, Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá foram condenados pela morte de Isabella e pela acusação de fraude processual pelo Tribunal do Júri, no Fórum de Santana, na Zona Norte de São Paulo.







Leia a íntegra da decisão:

VISTOS


1. ALEXANDRE ALVES NARDONI e ANNA CAROLINA TROTTA PEIXOTO JATOBÁ, qualificados nos autos, foram denunciados pelo Ministério Público porque no dia 29 de março de 2.008, por volta de 23:49 horas, na rua Santa Leocádia, nº 138, apartamento 62, vila Isolina Mazei, nesta Capital, agindo em concurso e com identidade de propósitos, teriam praticado crime de homicídio triplamente qualificado pelo meio cruel (asfixia mecânica e sofrimento intenso), utilização de recurso que impossibilitou a defesa da ofendida (surpresa na esganadura e lançamento inconsciente pela janela) e com o objetivo de ocultar crime anteriormente cometido (esganadura e ferimentos praticados anteriormente contra a mesma vítima) contra a menina ISABELLA OLIVEIRA NARDONI.
Aponta a denúncia também que os acusados, após a prática do crime de homicídio referido acima, teriam incorrido também no delito de fraude processual, ao alterarem o local do crime com o objetivo de inovarem artificiosamente o estado do lugar e dos objetos ali existentes, com a finalidade de induzir a erro o juiz e os peritos e, com isso, produzir efeito em processo penal que viria a ser iniciado.



--------------------------------------------------------------------------------
2. Após o regular processamento do feito em Juízo, os réus acabaram sendo pronunciados, nos termos da denúncia, remetendo-se a causa assim a julgamento ao Tribunal do Júri, cuja decisão foi mantida em grau de recurso.

3. Por esta razão, os réus foram então submetidos a julgamento perante este Egrégio 2º Tribunal do Júri da Capital do Fórum Regional de Santana, após cinco dias de trabalhos, acabando este Conselho Popular, de acordo com o termo de votação anexo, reconhecendo que os acusados praticaram, em concurso, um crime de homicídio contra a vítima Isabella Oliveira Nardoni, pessoa menor de 14 anos, triplamente qualificado pelo meio cruel, pela utilização de recurso que dificultou a defesa da vítima e para garantir a ocultação de delito anterior, ficando assim afastada a tese única sustentada pela Defesa dos réus em Plenário de negativa de autoria.

Além disso, reconheceu ainda o Conselho de Sentença que os réus também praticaram, naquela mesma ocasião, o crime conexo de fraude processual qualificado.

É a síntese do necessário.

FUNDAMENTAÇÃO.

4. Em razão dessa decisão, passo a decidir sobre a pena a ser imposta a cada um dos acusados em relação a este crime de homicídio pelo qual foram considerados culpados pelo Conselho de Sentença.
Uma vez que as condições judiciais do art. 59 do Código Penal não se mostram favoráveis em relação a ambos os acusados, suas penas-base devem ser fixadas um pouco acima do mínimo legal.
Isto porque a culpabilidade, a personalidade dos agentes, as circunstâncias e as conseqüências que cercaram a prática do crime, no presente caso concreto, excederam a previsibilidade do tipo legal, exigindo assim a exasperação de suas reprimendas nesta primeira fase de fixação da pena, como forma de reprovação social à altura que o crime e os autores do fato merecem.
Com efeito, as circunstâncias específicas que envolveram a prática do crime ora em exame demonstram a presença de uma frieza emocional e uma insensibilidade acentuada por parte dos réus, os quais após terem passado um dia relativamente tranqüilo ao lado da vítima, passeando com ela pela cidade e visitando parentes, teriam, ao final do dia, investido de forma covarde contra a mesma, como se não possuíssem qualquer vínculo afetivo ou emocional com ela, o que choca o sentimento e a sensibilidade do homem médio, ainda mais porque o conjunto probatório trazido aos autos deixou bem caracterizado que esse desequilíbrio emocional demonstrado pelos réus constituiu a mola propulsora para a prática do homicídio.
De igual forma relevante as conseqüências do crime na presente hipótese, notadamente em relação aos familiares da vítima.
Porquanto não se desconheça que em qualquer caso de homicídio consumado há sofrimento em relação aos familiares do ofendido, no caso específico destes autos, a angústia acima do normal suportada pela mãe da criança Isabella, Srª. Ana Carolina Cunha de Oliveira, decorrente da morte da filha, ficou devidamente comprovada nestes autos, seja através do teor de todos os depoimentos prestados por ela nestes autos, seja através do laudo médico-psiquiátrico que foi apresentado por profissional habilitado durante o presente julgamento, após realizar consulta com a mesma, o que impediu inclusive sua permanência nas dependências deste Fórum, por ainda se encontrar, dois anos após os fatos, em situação aguda de estresse (F43.0 - CID 10), face ao monstruoso assédio a que a mesma foi obrigada a ser submetida como decorrência das condutas ilícitas praticadas pelos réus, o que é de conhecimento de todos, exigindo um maior rigor por parte do Estado-Juiz quanto à reprovabilidade destas condutas.
A análise da culpabilidade, das personalidades dos réus e das circunstâncias e conseqüências do crime, como foi aqui realizado, além de possuir fundamento legal expresso no mencionado art. 59 do Código Penal, visa também atender ao princípio da individualização da pena, o qual constitui vetor de atuação dentro da legislação penal brasileira, na lição sempre lúcida do professor e magistrado Guilherme de Souza Nucci:

"Quanto mais se cercear a atividade individualizadora do juiz na aplicação da pena, afastando a possibilidade de que analise a personalidade, a conduta social, os antecedentes, os motivos, enfim, os critérios que são subjetivos, em cada caso concreto, mais cresce a chance de padronização da pena, o que contraria, por natureza, o princípio constitucional da individualização da pena, aliás, cláusula pétrea" ("Individualização da Pena", Ed. RT, 2ª edição, 2007, pág. 195).


Assim sendo, frente a todas essas considerações, majoro a pena-base para cada um dos réus em relação ao crime de homicídio praticado por eles, qualificado pelo fato de ter sido cometido para garantir a ocultação de delito anterior (inciso V, do parágrafo segundo do art. 121 do Código Penal) no montante de 1/3 (um terço), o que resulta em 16 (dezesseis) anos de reclusão, para cada um deles.
Como se trata de homicídio triplamente qualificado, as outras duas qualificadoras de utilização de meio cruel e de recurso que dificultou a defesa da vítima (incisos III e IV, do parágrafo segundo do art. 121 do Código Penal), são aqui utilizadas como circunstâncias agravantes de pena, uma vez que possuem previsão específica no art. 61, inciso II, alíneas "c" e "d" do Código Penal.
Assim, levando-se em consideração a presença destas outras duas qualificadoras, aqui admitidas como circunstâncias agravantes de pena, majoro as reprimendas fixadas durante a primeira fase em mais ¼ (um quarto), o que resulta em 20 (vinte) anos de reclusão para cada um dos réus.
Justifica-se a aplicação do aumento no montante aqui estabelecido de ¼ (um quarto), um pouco acima do patamar mínimo, posto que tanto a qualificadora do meio cruel foi caracterizada na hipótese através de duas ações autônomas (asfixia e sofrimento intenso), como também em relação à qualificadora da utilização de recurso que impossibilitou a defesa da vítima (surpresa na esganadura e lançamento inconsciente na defenestração).
Pelo fato do co-réu Alexandre ostentar a qualidade jurídica de genitor da vítima Isabella, majoro a pena aplicada anteriormente a ele em mais 1/6 (um sexto), tal como autorizado pelo art. 61, parágrafo segundo, alínea "e" do Código Penal, o que resulta em 23 (vinte e três) anos e 04 (quatro) meses de reclusão.
Como não existem circunstâncias atenuantes de pena a serem consideradas, torno definitivas as reprimendas fixadas acima para cada um dos réus nesta fase.
Por fim, nesta terceira e última fase de aplicação de pena, verifica-se a presença da qualificadora prevista na parte final do parágrafo quarto, do art. 121 do Código Penal, pelo fato do crime de homicídio doloso ter sido praticado contra pessoa menor de 14 anos, daí porque majoro novamente as reprimendas estabelecidas acima em mais 1/3 (um terço), o que resulta em 31 (trinta e um) anos, 01 (um) mês e 10 (dez) dias de reclusão para o co-réu Alexandre e 26 (vinte e seis) anos e 08 (oito) meses de reclusão para a co-ré Anna Jatobá.
Como não existem outras causas de aumento ou diminuição de pena a serem consideradas nesta fase, torno definitivas as reprimendas fixadas acima.

Quanto ao crime de fraude processual para o qual os réus também teriam concorrido, verifica-se que a reprimenda nesta primeira fase da fixação deve ser estabelecida um pouco acima do mínimo legal, já que as condições judiciais do art. 59 do Código Penal não lhe são favoráveis, como já discriminado acima, motivo pelo qual majoro em 1/3 (um terço) a pena-base prevista para este delito, o que resulta em 04 (quatro) meses de detenção e 12 (doze) dias-multa, sendo que o valor unitário de cada dia-multa deverá corresponder a 1/5 (um quinto) do valor do salário mínimo, uma vez que os réus demonstraram, durante o transcurso da presente ação penal, possuírem um padrão de vida compatível com o patamar aqui fixado.
Inexistem circunstâncias agravantes ou atenuantes de pena a serem consideradas.
Presente, contudo, a causa de aumento de pena prevista no parágrafo único do art. 347 do Código Penal, pelo fato da fraude processual ter sido praticada pelos réus com o intuito de produzir efeito em processo penal ainda não iniciado, as penas estabelecidas acima devem ser aplicadas em dobro, o que resulta numa pena final para cada um deles em relação a este delito de 08 (oito) meses de detenção e 24 (vinte e quatro) dias-multa, mantido o valor unitário de cada dia-multa estabelecido acima.

5. Tendo em vista que a quantidade total das penas de reclusão ora aplicadas aos réus pela prática do crime de homicídio triplamente qualificado ser superior a 04 anos, verifica-se que os mesmos não fazem jus ao benefício da substituição destas penas privativas de liberdade por restritivas de direitos, a teor do disposto no art. 44, inciso I do Código Penal.
Tal benefício também não se aplica em relação às penas impostas aos réus pela prática do delito de fraude processual qualificada, uma vez que as além das condições judiciais do art. 59 do Código Penal não são favoráveis aos réus, há previsão específica no art. 69, parágrafo primeiro deste mesmo diploma legal obstando tal benefício de substituição na hipótese.

6. Ausentes também as condições de ordem objetivas e subjetivas previstas no art. 77 do Código Penal, já que além das penas de reclusão aplicadas aos réus em relação ao crime de homicídio terem sido fixadas em quantidades superiores a 02 anos, as condições judiciais do art. 59 não são favoráveis a nenhum deles, como já especificado acima, o que demonstra que não faz jus também ao benefício da suspensão condicional do cumprimento de nenhuma destas penas privativas de liberdade que ora lhe foram aplicadas em relação a qualquer dos crimes.

7. Tendo em vista o disposto no art. 33, parágrafo segundo, alínea "a" do Código Penal e também por ter o crime de homicídio qualificado a natureza de crimes hediondos, a teor do disposto no artigo 2o, da Lei n° 8.072/90, com a nova redação que lhe foi dada pela Lei n. 11.464/07, os acusados deverão iniciar o cumprimento de suas penas privativas de liberdade em regime prisional FECHADO.
Quanto ao delito de fraude processual qualificada, pelo fato das condições judiciais do art. 59 do Código Penal não serem favoráveis a qualquer dos réus, deverão os mesmos iniciar o cumprimento de suas penas privativas de liberdade em relação a este delito em regime prisional SEMI-ABERTO, em consonância com o disposto no art. 33, parágrafo segundo, alínea "c" e seu parágrafo terceiro, daquele mesmo Diploma Legal.

8. Face à gravidade do crime de homicídio triplamente qualificado praticado pelos réus e à quantidade das penas privativas de liberdade que ora lhes foram aplicadas, ficam mantidas suas prisões preventivas para garantia da ordem pública, posto que subsistem os motivos determinantes de suas custódias cautelares, tal como previsto nos arts. 311 e 312 do Código de Processo Penal, devendo aguardar detidos o trânsito em julgado da presente decisão.
Como este Juízo já havia consignado anteriormente, quando da prolação da sentença de pronúncia - respeitados outros entendimentos em sentido diverso - a manutenção da prisão processual dos acusados, na visão deste julgador, mostra-se realmente necessária para garantia da ordem pública, objetivando acautelar a credibilidade da Justiça em razão da gravidade do crime, da culpabilidade, da intensidade do dolo com que o crime de homicídio foi praticado por eles e a repercussão que o delito causou no meio social, uma vez que a prisão preventiva não tem como único e exclusivo objetivo prevenir a prática de novos crimes por parte dos agentes, como exaustivamente tem sido ressaltado pela doutrina pátria, já que evitar a reiteração criminosa constitui apenas um dos aspectos desta espécie de custódia cautelar.
Tanto é assim que o próprio Colendo Supremo Tribunal Federal já admitiu este fundamento como suficiente para a manutenção de decreto de prisão preventiva:

"HABEAS CORPUS. QUESTÃO DE ORDEM. PEDIDO DE MEDIDA LIMINAR. ALEGADA NULIDADE DA PRISÃO PREVENTIVA DO PACIENTE. DECRETO DE PRISÃO CAUTELAR QUE SE APÓIA NA GRAVIDADE ABSTRATA DO DELITO SUPOSTAMENTE PRATICADO, NA NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO DA "CREDIBILIDADE DE UM DOS PODERES DA REPÚBLICA", NO CLAMOR POPULAR E NO PODER ECONÔMICO DO ACUSADO. ALEGAÇÃO DE EXCESSO DE PRAZO NA CONCLUSÃO DO PROCESSO."
"O plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 80.717, fixou a tese de que o sério agravo à credibilidade das instituições públicas pode servir de fundamento idôneo para fins de decretação de prisão cautelar, considerando, sobretudo, a repercussão do caso concreto na ordem pública." (STF, HC 85298-SP, 1ª Turma, rel. Min. Carlos Aires Brito, julg. 29.03.2005, sem grifos no original).


Portanto, diante da hediondez do crime atribuído aos acusados, pelo fato de envolver membros de uma mesma família de boa condição social, tal situação teria gerado revolta à população não apenas desta Capital, mas de todo o país, que envolveu diversas manifestações coletivas, como fartamente divulgado pela mídia, além de ter exigido também um enorme esquema de segurança e contenção por parte da Polícia Militar do Estado de São Paulo na frente das dependências deste Fórum Regional de Santana durante estes cinco dias de realização do presente julgamento, tamanho o número de populares e profissionais de imprensa que para cá acorreram, daí porque a manutenção de suas custódias cautelares se mostra necessária para a preservação da credibilidade e da respeitabilidade do Poder Judiciário, as quais ficariam extremamente abaladas caso, agora, quando já existe decisão formal condenando os acusados pela prática deste crime, conceder-lhes o benefício de liberdade provisória, uma vez que permaneceram encarcerados durante toda a fase de instrução.
Esta posição já foi acolhida inclusive pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, como demonstra a ementa de acórdão a seguir transcrita:

"LIBERDADE PROVISÓRIA - Benefício pretendido - Primariedade do recorrente - Irrelevância - Gravidade do delito - Preservação do interesse da ordem pública - Constrangimento ilegal inocorrente." (In JTJ/Lex 201/275, RSE nº 229.630-3, 2ª Câm. Crim., rel. Des. Silva Pinto, julg. em 09.06.97).

O Nobre Desembargador Caio Eduardo Canguçu de Almeida, naquele mesmo voto condutor do v. acórdão proferido no mencionado recurso de "habeas corpus", resume bem a presença dos requisitos autorizadores da prisão preventiva no presente caso concreto:

"Mas, se um e outro, isto é, se clamor público e necessidade da preservação da respeitabilidade de atuação jurisdicional se aliarem à certeza quanto à existência do fato criminoso e a veementes indícios de autoria, claro que todos esses pressupostos somados haverão de servir de bom, seguro e irrecusável fundamento para a excepcionalização da regra constitucional que presumindo a inocência do agente não condenado, não tolera a prisão antecipada do acusado."

E, mais à frente, arremata:

"Há crimes, na verdade, de elevada gravidade, que, por si só, justificam a prisão, mesmo sem que se vislumbre risco ou perspectiva de reiteração criminosa. E, por aqui, todos haverão de concordar que o delito de que se trata, por sua gravidade e característica chocante, teve incomum repercussão, causou intensa indignação e gerou na população incontrolável e ansiosa expectativa de uma justa contraprestação jurisdicional. A prevenção ao crime exige que a comunidade respeite a lei e a Justiça, delitos havendo, tal como o imputado aos pacientes, cuja gravidade concreta gera abalo tão profundo naquele sentimento, que para o restabelecimento da confiança no império da lei e da Justiça exige uma imediata reação. A falta dela mina essa confiança e serve de estímulo à prática de novas infrações, não sendo razoável, por isso, que acusados por crimes brutais permaneçam livre, sujeitos a uma conseqüência remota e incerta, como se nada tivessem feito." (sem grifos no original).


Nessa mesma linha de raciocínio também se apresentou o voto do não menos brilhante Desembargador revisor, Dr. Luís Soares de Mello que, de forma firme e consciente da função social das decisões do Poder Judiciário, assim deixou consignado:

"Aquele que está sendo acusado, e com indícios veementes, volte-se a dizer, de tirar de uma criança, com todo um futuro pela frente, aquilo que é o maior 'bem' que o ser humano possui - 'a vida' - não pode e não deve ser tratado igualmente a tantos outros cidadãos de bem e que seguem sua linha de conduta social aceitável e tranqüila.
E o Judiciário não pode ficar alheio ou ausente a esta preocupação, dês que a ele, em última instância, é que cabe a palavra e a solução.
Ora.
Aquele que está sendo acusado, 'em tese', mas por gigantescos indícios, de ser homicida de sua 'própria filha' - como no caso de Alexandre - e 'enteada' - aqui no que diz à Anna Carolina - merece tratamento severo, não fora o próprio exemplo ao mais da sociedade.
Que é também função social do Judiciário.
É a própria credibilidade da Justiça que se põe à mostra, assim." (sem grifos no original).



Por fim, como este Juízo já havia deixado consignado anteriormente, ainda que se reconheça que os réus possuem endereço fixo no distrito da culpa, posto que, como noticiado, o apartamento onde os fatos ocorreram foi adquirido pelo pai de Alexandre para ali estabelecessem seu domicílio, com ânimo definitivo, além do fato de Alexandre, como provedor da família, possuir profissão definida e emprego fixo, como ainda pelo fato de nenhum deles ostentarem outros antecedentes criminais e terem se apresentado espontaneamente à Autoridade Policial para cumprimento da ordem de prisão temporária que havia sido decretada inicialmente, isto somente não basta para assegurar-lhes o direito à obtenção de sua liberdade durante o restante do transcorrer da presente ação penal, conforme entendimento já pacificado perante a jurisprudência pátria, face aos demais aspectos mencionados acima que exigem a manutenção de suas custódias cautelares, o que, de forma alguma, atenta contra o princípio constitucional da presunção de inocência:

"RHC - PROCESSUAL PENAL - PRISÃO PROVISÓRIA - A primariedade, bons antecedentes, residência fixa e ocupação lícita não impedem, por si só, a prisão provisória" (STJ, 6ª Turma, v.u., ROHC nº 8566-SP, rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, julg. em 30.06.1999).


"HABEAS CORPUS . HOMICÍDIO QUALIFICADO. PRISÃO PREVENTIVA. ASSEGURAR A INSTRUÇÃO CRIMINAL. AMEAÇA A TESTEMUNHAS. MOTIVAÇÃO IDÔNEA. ORDEM DENEGADA.
1. A existência de indícios de autoria e a prova de materialidade, bem como a demonstração concreta de sua necessidade, lastreada na ameaça de testemunhas, são suficientes para justificar a decretação da prisão cautelar para garantir a regular instrução criminal, principalmente quando se trata de processo de competência do Tribunal do Júri.
2. Nos processos de competência do Tribunal Popular, a instrução criminal exaure-se definitivamente com o julgamento do plenário (arts. 465 a 478 do CPP).
3. Eventuais condições favoráveis ao paciente - tais como a primariedade, bons antecedentes, família constituída, emprego e residência fixa - não impedem a segregação cautelar, se o decreto prisional está devidamente fundamentado nas hipóteses que autorizam a prisão preventiva. Nesse sentido: RHC 16.236/SP, Rel. Min. FELIX FISCHER, DJ de 17/12/04; RHC 16.357/PR, Rel. Min. GILSON DIPP, DJ de 9/2/05; e RHC 16.718/MT, de minha relatoria, DJ de 1º/2/05).
4. Ordem denegada. (STJ, 5ª Turma, v.u., HC nº 99071/SP, rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, julg. em 28.08.2008).


Ademais, a falta de lisura no comportamento adotado pelos réus durante o transcorrer da presente ação penal, demonstrando que fariam tudo para tentar, de forma deliberada, frustrar a futura aplicação da lei penal, posto que após terem fornecido material sanguíneo para perícia no início da apuração policial e inclusive confessado este fato em razões de recurso em sentido estrito, apegaram-se a um mero formalismo, consistente na falta de assinatura do respectivo termo de coleta, para passarem a negar, de forma veemente, inclusive em Plenário durante este julgamento, terem fornecido aquelas amostras de sangue, o que acabou sendo afastado posteriormente, após nova coleta de material genético dos mesmos para comparação com o restante daquele material que ainda estava preservado no Instituto de Criminalística.
Por todas essas razões, ficam mantidas as prisões preventivas dos réus que haviam sido decretadas anteriormente por este Juízo, negando-lhes assim o direito de recorrerem em liberdade da presente decisão condenatória.




DECISÃO.

9. Isto posto, por força de deliberação proferida pelo Conselho de Sentença que JULGOU PROCEDENTE a acusação formulada na pronúncia contra os réus ALEXANDRE ALVES NARDONI e ANNA CAROLINA TROTTA PEIXOTO JATOBÁ, ambos qualificados nos autos, condeno-os às seguintes penas:

a) co-réu ALEXANDRE ALVES NARDONI:
- pena de 31 (trinta e um) anos, 01 (um) mês e 10 (dez) dias de reclusão, pela prática do crime de homicídio contra pessoa menor de 14 anos, triplamente qualificado, agravado ainda pelo fato do delito ter sido praticado por ele contra descendente, tal como previsto no art. 121, parágrafo segundo, incisos III, IV e V c.c. o parágrafo quarto, parte final, art. 13, parágrafo segundo, alínea "a" (com relação à asfixia) e arts. 61, inciso II, alínea "e", segunda figura e 29, todos do Código Penal, a ser cumprida inicialmente em regime prisional FECHADO, sem direito a "sursis";

- pena de 08 (oito) meses de detenção, pela prática do crime de fraude processual qualificada, tal como previsto no art. 347, parágrafo único do Código Penal, a ser cumprida inicialmente em regime prisional SEMI-ABERTO, sem direito a "sursis" e 24 (vinte e quatro) dias-multa, em seu valor unitário mínimo.

B) co-ré ANNA CAROLINA TROTTA PEIXOTO JATOBÁ:

- pena de 26 (vinte e seis) anos e 08 (oito) meses de reclusão, pela prática do crime de homicídio contra pessoa menor de 14 anos, triplamente qualificado, tal como previsto no art. 121, parágrafo segundo, incisos III, IV e V c.c. o parágrafo quarto, parte final e art. 29, todos do Código Penal, a ser cumprida inicialmente em regime prisional FECHADO, sem direito a "sursis";
- pena de 08 (oito) meses de detenção, pela prática do crime de fraude processual qualificada, tal como previsto no art. 347, parágrafo único do Código Penal, a ser cumprida inicialmente em regime prisional SEMI-ABERTO, sem direito a "sursis" e 24 (vinte e quatro) dias-multa, em seu valor unitário mínimo.

10. Após o trânsito em julgado, feitas as devidas anotações e comunicações, lancem-se os nomes dos réus no livro Rol dos Culpados, devendo ser recomendados, desde logo, nas prisões em que se encontram recolhidos, posto que lhes foi negado o direito de recorrerem em liberdade da presente decisão.

11. Esta sentença é lida em público, às portas abertas, na presença dos réus, dos Srs. Jurados e das partes, saindo os presentes intimados.
Plenário II do 2º Tribunal do Júri da Capital, às 00:20 horas, do dia 27 de março de 2.010.

Registre-se e cumpra-se.

MAURÍCIO FOSSEN
Juiz de Direito


Fonte: Rede Globo
www.globo.com.br

• Intervenção no TJ-MT já!

LUCIANA SERAFIM
Diante do cenário instaurado no Judiciário Estadual, não há como afastar a incidência do instituto constitucional da intervenção. Do contrário, não se recuperará a credibilidade do nosso tribunal.

O Judiciário deve ter um alicerce firme, para que possa aplicar a Justiça buscada pelas partes litigantes. Com um Judiciário podre a Justiça dita por ele também será podre.

Além das falcatruas já detectadas pelo CNJ que levaram a determinar a aposentadoria compulsória de vários desembargadores e magistrados por movimentação de valores em proveito de loja maçônica, também há uma investigação relativa à venda de decisões. E isso é muito grave.

Já há muito tempo correm rumores nos bastidores da advocacia e até mesmo entre os próprios magistrados e desembargadores, sobre essa pratica. Alguns advogados, inclusive, já são carimbados pela classe como "lobistas".

Entretanto, apesar de tanto falatório, provas não foram apresentadas e sequer investigadas. No que tange a ausência de investigação, não há como afastar a culpa por omissão do Ministério Público, que se utiliza de escutas telefônicas de forma desenfreada, na gana de atrair para si o poder investigatório que não lhe compete.

Todavia, é estranho que não se tenha buscado escutas para apurar a existência ou não dessa erva daninha. Porque, também como corre a boca pequena, a certeza da impunidade chegou a tal ponto, que muitas dessas negociações são feitas através de bate-papo por telefone.

Liminares surgem da noite para o dia, e na mesma linha fortunas de juízes, desembargadores e advogados. Alguns destes últimos, apesar do pouco tempo de profissão, apresentam-se com vestimenta, carro, casa, escritório, conta bancária, viagens, dentre outros, muito suspeitos. Qual será o caminho das pedras?

Aqueles que realmente militam na advocacia sabem das agruras diárias da profissão, e que ela não é esse mar de rosas, muito embora seja bela e perfumada.

O patrimônio de muitos magistrados e desembargadores não com condiz com seus vencimentos. Onde está a investigação da Receita Federal e Ministério Público?

Na imprensa já esta a lista dos possíveis substitutos aos aposentados pelo CNJ, e as matérias apresentam comentários que devem também ser investigados pelo MP.

Alguns deles citam nomes de magistrados que são apontados como praticantes de atos piores do que aqueles que foram feitos pelos que saíram. Verdade? Mentira? Não sei! Minha certeza apenas é de que a dúvida não pode pairar jamais, ainda mais sobre o julgador. E a investigação é necessária até mesmo para preservar os bons, os inocentes, que acabam sendo colocados no mesmo balaio.

Desses comentários, também não escapam os advogados, pelo que uma atuação mais incisiva da OAB-MT se faz necessária, seja para buscar os autores das "informações" e com isso obter maiores esclarecimentos, seja para pedir que o MP o faça. A grande maioria dos advogados são dignos e corretos, não podendo viver sob a pecha de bandidos que vestem a beca por conveniência.

Não bastasse tudo isso, hoje veio à mídia cópia de ofício da lavra do Des. Rubens de Oliveira, ocupante da vaga do quinto constitucional da OAB no TJMT, via do qual ele encaminha cheque ao presidente do tribunal visando a devolução de numerário cujo recebimento por ele foi expressamente qualificado como "insubsistente".

Não quero fazer falso juízo e não o farei, ainda mais com a alegada ausência de má-fé do desembargador. Mas confesso que não pude deixar de questionar se estes valores foram devidamente atualizados para a devolução e ainda quantos outros desembargadores receberam esses valores "insubsistentes" e não os devolveram.

Por tudo isso questiona-se: como se julga o outro sobre a prática do "certo e do errado" se praticamos o errado?

Destarte, não há como se afastar a necessidade de uma urgente intervenção no TJMT, para poder lavar toda essa sujeira com água sanitária e sabão, pois somente depois de findada a faxina, é que teremos um Judiciário com cheiro novo, para receber o povo e lhe dar a Justiça sem olhar a quem.

LUCIANA SERAFIM, advogada, é presidente da Associação dos Advogados Trabalhistas de Mato Grosso (Aatramat).
lucianaserafimsemreservas@blogspot.com
lucianaserafim_adv@terra.com.br

quinta-feira, 25 de março de 2010

Alexandre Nardoni confronta promotor em depoimento

A segunda parte do interrogatório de Alexandre Nardoni no quarto dia de julgamento do caso Isabella foi marcada pelo conflito entre o réu e o promotor Francisco Cembranelli. Nardoni tentava responder de forma monossilábica, e na maior parte das vezes dizia não se lembrar de detalhes, inclusive sobre aqueles que já tinha citado em depoimentos anteriores.


Em algumas partes, o pai de Isabella enfrentou o promotor: "Não coloque palavras na minha boca". Outras vezes, dizia para a acusação: "Isso não tem pertinência". O juiz interveio. "O senhor responda a pergunta, se eu achar impertinente, indefiro", disse Maurício Fossen.


Um dos maiores embates se deu quando o promotor perguntou por que Nardoni não socorreu a filha quando chegou ao térreo e não havia ninguém em volta da menina. "Não sei dizer. Porque ela estava no chão naquele momento. Quando eu cai em si (sic), o seu Lúcio (vizinho) dizia para não mexer nela", disse Alexandre ao relembrar a noite do dia 29 de março de 2008.


O réu respondia às perguntas de forma nervosa e evasiva. A defesa usava a estratégia de perguntar ao promotor em que página do processo estavam as afirmações que ele usava para interrogar Nardoni. O promotor rebateu dizendo que isso era feito para dar tempo do réu pensar. No final, Cembranelli começava a dizer a página em que se baseava antes de perguntar.


Em outro momento, quando perguntado por que não falou com Anna Carolina Jatobá, sua esposa, após a morte de Isabella, respondeu: "A situação era embaraçosa, eu tinha perdido o chão. Não sabia nem que rumo tomava. Havia perdido a coisa mais valiosa que eu tinha."


Ele voltou a dizer que foi agredido verbalmente por policiais. A promotoria, então, perguntou por que ele nunca relatou isso em interrogatórios, indagando especialmente por que ele nunca havia revelado a proposta de livrar em Jatobá, que o réu disse ter recebido. "Não me recordo", limitou-se a dizer.


Outro ponto em que o clima do interrogatório esquentou foi quando Cembranelli perguntou por que o réu estava usando óculos: "Eu nunca vi o senhor de óculos, começou a usar agora?". Nardoni respondeu: "o senhor não me conhece". Foi a vez do juiz intervir e pedir para ele responder a pergunta - o réu disse apenas que não enxergava bem de longe. "A ponto de não sair lágrima quando chora?", provocou o promotor. O juiz, então, voltou a se manifestar, pedindo ordem.


A sessão entrou em recesso para almoço por volta das 13h35. Na volta, Nardoni será interrogado pela defesa.

Por Gabriel Pinheiro e Marcelo Godoy, Agencia Estado, Atualizado: 25/3/2010 15:15

domingo, 21 de março de 2010

Ações afirmativas e políticas de afirmação do negro no Brasil

Carlos Vogt


De um modo geral, os estudos e as atitudes intelectuais e políticas voltados positivamente à questão do negro no Brasil só se desenvolvem, efetivamente, no século XX, embora tenha havido, no século XIX, toda uma literatura abolicionista, de Castro Alves a Joaquim Nabuco que, no entanto, tratou o negro como um problema homogeneizado pela escravidão, enquanto mácula.

É verdade que Nina Rodrigues, apontado como pioneiro dos estudos africanos no Brasil, vinha trabalhando sobre o tema desde o final do século XIX e que já em 1900 havia publicado no Jornal do Comércio o que viria a ser depois capítulo do livro póstumo Os africanos no Brasil, de 1933. Dois outros capítulos desse livro foram também publicados antes da morte do autor em Paris, em 1906: "As sublevações de negros no Brasil anteriores ao século XIX. Palmares", no Diário da Bahia e "Sobrevivências totêmicas: festas populares e folclore", novamente no Jornal do Comércio.

A advertência que Silvio Romero fizera no mesmo ano da Abolição da Escravatura, em 1888, sobre a urgência de se voltarem os estudos no Brasil para a questão do negro aparece como epígrafe no livro de Nina Rodrigues:

[...] temos a África em nossas cozinhas, como a América em nossas selvas, e a Europa em nossos salões [...] Apressem-se os especialistas, visto que os pobres moçambiques, benguelas, monjolos, congos, cabindas, caçangas... vão morrendo..."

A adoção da advertência de Silvio Romero por Nina Rodrigues, como epígrafe, resume bem as contradições de atitudes em relação ao negro que marcaram a obra do médico e intelectual maranhense na Bahia: Defensor dos valores culturais dos africanos no Brasil e dos seus direitos à liberdade de suas práticas religiosas, mesmo contra as autoridades policiais que as perseguiam, Nina Rodrigues irmanava-se também com Silvio Romero na visão "científica" da inferioridade racial do negro:

"O critério científico da inferioridade da Raça Negra nada tem de comum com a revoltante exploração que dele fizeram os interesses escravistas dos norte-americanos. Para a ciência não é esta inferioridade mais do que um fenômeno de ordem perfeitamente natural, produto da marcha desigual do desenvolvimento filogenético da humanidade nas suas diversas divisões ou secções (...) A Raça Negra no Brasil, por maiores que tenham sido os seus incontestáveis serviços à nossa civilização, por mais justificadas que sejam as simpatias de que a cercou o revoltante abuso da escravidão, por maiores que se revelem os generosos exageros dos seus turiferários, há de constituir sempre um dos fatores de nossa inferioridade como povo (...)."

II

Em 1941, M. Herskovits, autor, na mesma década e na seguinte, de vários trabalhos sobre a cultura afro-brasileira, publica o livro The myth of the negro past. Nele, logo no início declara a intenção de, realizando pesquisas sobre a cultura de origem africana no EUA, contribuir para "melhorar a situação inter-racial" nesse país.

Constrói, assim, livro para ajudar a compreender a história do negro, história até então ignorada, por zelo e por descuido, contrapondo-se a cinco "mitos" então vigentes. Primeiro, que os negros, como crianças, reagem pacificamente a "situações sociais não satisfatórias"; segundo, que apenas os africanos mais fracos foram capturados, tendo os mais inteligentes fugido com êxito; terceiro, como os escravos provinham de todas as regiões da África, falavam diversas línguas, vinham de culturas bastante variadas e tendo sido dispersos por todo o país, não conseguiram estabelecer um "denominador cultural" comum; quarto, que, embora negros da mesma origem tribal conseguissem, às vezes, manter-se juntos nos EUA, não conseguiam manter a sua cultura porque esta era patentemente inferior à dos seus senhores; quinto, que "o negro é assim um homem sem um passado".

Ao escrever o prefácio da 2ª edição de seu livro, em 1958, Herskovits reconheceria que muitas coisas haviam mudado, desde a primeira edição, em 1941 e que o número de negros que rejeitavam seu passado estava diminuindo paulatinamente, o mesmo acontecendo com as atitudes dos brancos em relação aos pontos de vista anteriores, para, então, arrematar:

"E o negro americano, ao descobrir que tem um passado, adquire uma segurança maior de que terá um futuro."

A oposição entre o otimismo culturalista de Herskovits e o pessimismo cientifista de Nina Rodrigues explica-se, entre outras coisas, pela própria mudança dos paradigmas teóricos no tratamento dos africanismos na América e pelo descrédito científico em que acabara caindo a frenologia lombrosiana e que tanto marcava a postura intelectual de Nina Rodrigues e de tantos outros no Brasil, inclusive Euclides da Cunha em Os sertões.

Mas, como se viu, o racismo cientificista de Nina Rodrigues não era a única vertente analítica de seus estudos sobre o tema. A simpatia pela cultura dos povos africanos para cá trazidos como escravos, os processos de suas adequações, transformações e influências pela interação com os outros elementos constitutivos dessa nova realidade - o branco europeu e o indígena americano, em particular, como lembrava, veemente e dramático, Silvio Romero - , essa simpatia, pois, resultando em atitudes intelectuais positivas em relação ao negro, foi o que sobreviveu ao modismo positivista do médico Nina Rodrigues, fazendo do etnólogo, que nele também convivia, a influência mais importante para o desenvolvimento dos estudos do negro no Brasil no início do século XX.

Nessa linha, muitos foram os seus seguidores ou, ao menos, seus admiradores nas décadas seguintes, caso, em particular, de Artur Ramos e de Edison Carneiro, mesmo quando se contrapunham em diferenças teóricas e metodológicas, ou quando se alinhavam nas disputas regionais, Gilberto Freyre puxando, é claro, para Pernambuco, pela primazia do autêntico das manifestações culturais africanas no Brasil.

E o que acontece, por exemplo, na avaliação que Edison Carneiro faz no artigo "O Congresso Afro-Brasileiro da Bahia", descrito em 1940, no qual ao tecer elogios a esse encontro realizado em 1937, o contrapõe, ao mesmo tempo, ao Congresso do Recife, de 1934, pelo critério da maior ou menor pureza das apresentações dos ritos e cerimônias apresentados, num e noutro caso, aos congressistas:

"Esta ligação imediata como o povo negro, que foi a glória maior do Congresso da Bahia, deu ao certame um colorido único", como já previra Gilberto Freyre. Artur Ramos, em carta que me escreveu sobre a entrevista ao Diário de Pernambuco, dizia:

"O material daí que [Gilberto Freyre] julga apenas pitoresco constituirá justamente a parte de maior interesse científico. O Congresso do Recife, levando os babalorixás, com sua música, para o palco do Santa Isabel, pôs em xeque a pureza dos ritos africanos. O Congresso da Bahia não caiu nesse erro. Todas as ocasiões em que os congressistas tomaram contato com as coisas do negro foi no seu próprio meio de origem, nos candomblés, nas rodas de samba e de capoeira."


III

Edison Carneiro, no artigo "Nina Rodrigues", escrito em 1956 reconhece, apesar das críticas, os méritos do autor de Africanos no Brasil, em especial, o de ter proposto um método comparativo para o estudo dos comportamentos do negro no Brasil e na África. Edison Carneiro e Artur Ramos são herdeiros desse método, o que é explicitamente reconhecido pelo primeiro quando escreve no mesmo artigo acima citado:

"Línguas, religiões e folclore eram elementos dessa comparação a que a história dava a perspectiva final. Deste modo ganhou o negro a sua verdadeira importância em face da sociedade brasileira."

Compare-se, agora, o que vai dito nesse último período da citação de Edison Carneiro com a observação de Herskovits, transcrita mais atrás ("E o negro americano, ao descobrir que tem um passado, adquire uma segurança maior de que terá um futuro."), e ter-se-á uma medida objetiva de quanto os propósitos político-intelectuais desses autores eram coincidentes, levando-se em conta, é claro, as diferenças entre a sociedade americana e a sociedade brasileira.

Mas, num caso e noutro, tratava-se de reencontrar a história do negro pela via da valorização de sua cultura, na África e no país de destino, comparando-a nas duas situações, fazendo-o, dessa vez chegar aos EUA ou no Brasil, onde quer que fosse, pela porta da dignidade e da distinção que o passaporte dos ritos, das línguas, da complexidade cultural de suas origens lhe conferia.

É a fase heróica dos estudos do negro no Brasil. Por volta de 1950 encerra-se, segundo Edison Carneiro essa fase e tem início a chamada fase sociológica desses estudos, conforme se pode ler no seu artigo programático "Os estudos brasileiros do negro", de 1953:

"Se o negro com sua presença alterou certos traços do branco e do indígena, sabemos que estes, por sua vez, transformaram toda a vida material e espiritual do negro, que hoje representa apenas 11% da população (1950), utiliza a língua portuguesa e na prática esquecem as suas antigas vinculações tribais para interessar-se pelos problemas nacionais como um brasileiro de quatro costados. Tudo isso significa que devemos analisar o particular sem perder de vista o geral, sem prescindir do geral, tendo sempre presente a velha constatação científica de que a modificação na parte implica em modificação no todo, como qualquer modificação no todo importa em modificações em suas partes."

Estava encerrada a fase afro-brasileira dos estudos do negro no Brasil e firmava-se, particularmente, com os trabalhos de Florestan Fernandes, Octavio Ianni e Fernando Henrique Cardoso, na chamada Escola Sociológica de São Paulo, uma nova tendência desses estudos agora voltados para a análise da estrutura de classes no país e, nela, para a história particular do negro, primeiro como escravo, depois como trabalhador livre marcado pelo estigma do preconceito de cor.

Como escrevemos no livro Cafundó - A África no Brasil, que publicamos em co-autoria com Peter Fry e com a colaboração de Robert Slenes, ao romantismo da fase teórica substitui-se um realismo de inspiração sociológica, de fundo social e de aspiração socialista.

Resumindo, o movimento desses estudos poderia ser caracterizado, em um primeiro passo, por sua ênfase cientificista ou médico-legalista, embora já com as sementes do culturalismo que dominaria o panorama da segunda fase, havendo em um terceiro momento, a predominância de uma visão sociológica da questão, como acabamos de dizer.

IV

Essas três fases dos estudos do negro no Brasil contribuem também, de certa forma, para a compreensão das diferentes fases por que passou o movimento negro no século XX, do ponto de vista de suas lutas, de suas reivindicações, de suas bandeiras e das explicações científicas, culturais e sociológicas que fundamentam as ênfases de suas ações políticas.

Assim, nos anos 1920, as próprias organizações negras refletiam a visão de que o principal problema da população negra no Brasil estava nela mesma, dadas as condições precárias de sua educação formal, a fraqueza das organizações em si mesmas e a conseqüente falta de habilidade para concorrer às disputas no mercado de trabalho, tudo isso acrescido, é claro, do "preconceito de cor" que dificultava e obstruía a integração social e discriminava o negro, pela cor, na sociedade.

A democracia racial, como ideal político e social programático, concomitante à redemocratização do país em 1945, coincidente também com o fim da Segunda Guerra Mundial e com a vitória dos países aliados sobre o nazi-fascismo, propicia o desenvolvimento de ações no campo educacional, cultural e mesmo psicanalítico, como é o caso do Teatro Experimental do Negro, no Rio de Janeiro, que, através de diferentes organizações, visam à reforçar, quando não despertar, o sentimento de orgulho e de distinção por ser negro, desse modo, contribuir para capacitá-lo a enfrentar o seu pior inimigo na sociedade, o preconceito racial, agente também perturbador do progresso integrado do país na comunhão das raças, dos credos, das diferenças.

Vê-se por aí o quanto esse movimento reflete características próprias da segunda fase dos estudos do negro no país, e o quanto os seus objetivos lembram os propósitos enunciados por Herskovits, no EUA e por Artur Ramos ou Edison Carneiro, entre nós.

A transformação da democracia social de ideário político em mito e em ideologia e, portanto, em expediente de ilusionismo social vai se dar, de maneira consistente, a partir dos anos 1970 e, talvez, um dos fatos mais importantes dessa nova tendência e postura seja a fundação em 1978, em São Paulo, do Movimento Negro Unificado.

Não será difícil identificar nesse momento aspectos coincidentes com os que se encontram na linha sociológica dos estudos do negro e caracterizam, de um modo geral, a terceira fase desses trabalhos, porquanto a grande responsável pela situação de exclusão do negro está na verdade, na estrutura de dominação da sociedade pelo establishement branco, consolidado no governo e difundido na sociedade civil. Passa-se, pois, da democracia racial, integradora e geradora de plenos direitos para a denúncia de uma dominação real assentada sobre a base de um racismo difuso e poderoso.

V

O que se segue, até hoje, na história dos estudos e dos movimentos negros no Brasil, tem, grosso modo, a ver com as características acima apontadas para as diferentes fases de sua evolução e transformação nos campos teórico e prático das ações que lhes são próprias.

Em 1988, no ano do centenário da Abolição da Escravatura, foi promulgada a nova Constituição da República Federativa do Brasil. Nela, em decorrência da lutas pelos direitos civis dos negros, ficou consagrado, no Título II - Dos direitos e garantias fundamentais -, Capítulo I - Dos direitos e deveres individuais e coletivos -, Artigo 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

Artigo XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei.

A regulamentação desse parágrafo veio em seguida pela Lei nº 7716, de 5 de janeiro de 1989, modificada pela Lei 008882 de 3 de junho de 1994 e novamente modificada em 13 de maio de 1997, pela Lei nº 9459, que acrescentou também ao Artigo 140 do Código Penal relativo ao crime de injúria por utilização de "elementos referentes a raça, cor, etnia, religião ou origem", estabelecendo pena de "reclusão de um a três anos e multa".

O passo seguinte seria o das ações afirmativas, cujo modelo podia ser buscado nos EUA dos anos 1960, e, mais recentemente, no governo de Nelson Mandela, na África do Sul.

Aqui, sim, numa quarta fase, opera-se uma mudança importante no paradigma clássico dos estudos e dos movimentos negros no Brasil, embora ela própria seja decorrente também das grandes transformações que na economia, na política, e na cultura o mundo contemporâneo passa a conhecer, sobretudo a partir de 1989, com a queda do muro de Berlim e a consolidação do fenômeno da globalização em todos os setores da vida social. Deixa-se de lado o ideal do Brasil mestiço para proceder às ações pelo reconhecimento étnico-racial dos negros.

Leia-se, nesse sentido, o que escreve Antonio Sérgio Alfredo Guimarães no artigo "Acesso de negros às universidades públicas", de 2002:

Nos primeiros tempos, de 1995 até bem recentemente, a reação da sociedade civil, representada pelos seus intelectuais e meios de comunicação de massa, foi largamente contrária à adoção de políticas de cunho racialista. O movimento negro, assim como os poucos intelectuais brancos que defendiam tais políticas, viram-se politicamente isolados, por mais de uma vez sob a acusação de vocalizar e deixar-se colonizar culturalmente pelos valores norte-americanos. De fato, nada mais contrário à identidade nacional brasileira, tal como foi formada historicamente - como identidade autocolonial, culturalmente híbrida e racialmente mestiça -, que o reconhecimento étnico-racial dos negros. Assim, os que por ventura tinham sólidos interesses na manutenção das desigualdades encontraram aliados cujos motivos eram puramente ideológicos, pessoas que viam nas políticas dirigidas preferencialmente aos negros a penetração no Brasil do 'multiculturalismo' e do 'multirracionalismo' de extração anglo-saxônica".



VI

Do ponto de vista das ações afirmativas, o país caminhou bastante nesses últimos anos no que diz respeito aos cenários mais positivos para a mobilidade social, o desenvolvimento pessoal, a formação profissional e as chances de concorrência e competição do homem e da mulher negra no mercado de trabalho.

Mas há ainda, muito o que avançar e muitas resistências a serem quebradas entre os intelectuais e a sociedade civil se se considerar, por exemplo, os dados de 2001 da pesquisa direta do programa "A cor da Bahia/UFBA" e do I Censo Étnico Racial da USP e IBGE, também apresentados no artigo acima referido.

Segundo esses dados, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) o número de alunos brancos é de 76,8%, o de negros 20,3% para uma população negra no estado de 44, 63%; na Universidade Federal do Paraná (UFPR) os brancos são 86,6%, os negros, 8,6%, para uma população negra no estado de 20,27%; na Universidade Federal do Maranhão (UFMA), brancos são 47%, negros 42,8% e a população negra no estado, 73,36%; na Universidade Federal da Bahia (UFBA), 50,8% são brancos, 42,6% negros e 74,95% a população negra do estado; na Universidade de Brasília (UnB), são brancos 63,74%, são negros 32,3%, tendo o Distrito Federal uma população negra de 47,98%; na Universidade de São Paulo (USP), os alunos brancos somam 78,2%, os negros, 8,3% e o percentual da população negra no estado é de 27,4%.

Vê-se, assim, que o déficit produzido por essas diferenças é bastante desfavorável ao negro nos estados onde se encontram essas universidades: 24,33% na UFRJ, 11,67% na UFPR, 30,56% na UFMA, 32,35% na UFBA, 15,68% na UnB e 19,1% na USP.

Como disse, há, contudo, avanços, sobretudo por parte do governo quanto à adoção de ações afirmativas relativamente à população negra do país, entre elas o abandono oficial da doutrina da "democracia racial" desde a Conferência Mundial Contra a Discriminação Racial, realizada em Durban, na África do Sul, acompanhada de instituição de cotas de emprego em vários ministérios e serviços, além da criação de programas voltados para os direitos humanos, para a formação profissional e para o reconhecimento do direito à titulação de propriedade de terras remanescentes de quilombos, entre outros.


VII

As cotas nas universidades, como já tive oportunidade de defender, tem um papel estratégico nessa luta por igualdade de oportunidades e são parte de um conjunto maior de ações afirmativas que tendem, felizmente, a crescer cada vez em nossa sociedade.

No artigo "O repto da proteção", a propósito do tema das políticas públicas de proteção e de emancipação, visito algumas páginas de romances e crônicas de Machado de Assis em que se apresentam situações que desenham, em traços de atenta observação crítica, as relações sociais entre brancos senhores e negros escravos, ou libertos, e mostram, com leveza de estilo e sensibilidade, a natureza complexa e o peso dos problemas que essa sociedade escravocrata legaria para as gerações futuras no Brasil.

Retomo aqui as duas crônicas do livro Bons dias, ambas de 1888, uma do dia 19 de maio e outra do dia 26 de junho, que registraram, com a fina ironia que é própria do autor e com o cinismo oportunista característico de muitos de seus personagens, duas situações reveladoras do ethos dos senhores no day after do ato legal da abolição.

Na primeira, do dia 19 de maio, seis depois da promulgação pela princesa Isabel da Lei Áurea, o cronista nela representado, apresenta-se como um profeta post factum e vangloria-se, para efeito de suas aspirações políticas, de ter-se antecipado ao 13 de maio alforriando "um molecote que tinha, pessoa de seus dezoito anos mais ou menos."

De maneira sinceramente hipócrita relata ainda, explicando seu gesto pela causa final de seus interesses pessoais e estes, pelas razões eficientes da classe social a que pertence:

"O meu plano está feito; quero ser deputado, e, na circular que mandarei aos meus eleitores, direi que, antes, muito antes da abolição legal, já eu, em casa, na modéstia da família, libertava um escravo, ato que comoveu a toda a gente que dele teve notícia; que esse escravo tendo aprendido a ler, escrever e contar, (simples suposição) é então professor de filosofia no Rio das Cobras; que os homens puros, grandes e verdadeiramente políticos, não são os que obedecem à lei, mas os que se antecipam a ela, dizendo ao escravo: és livre, antes que os poderes públicos, sempre retardatários, trôpegos e incapazes de restaurar a justiça na terra, para satisfação do céu."


Na outra, a do dia 26 de junho transcorridos mais de um mês da Abolição, o nosso cronista fictício arquiteta agora maneiras de tirar proveito econômico e não apenas político da nova situação.

Como um Tchitchikof dos trópicos trata de comprar, tal qual no romance de Gogol, Almas mortas, no caso, escravos libertos, com documentos datados de antes do 13 de maio e, assim, poder "vendê-los" ao poder público para recuperação das "perdas" sofridas com a abolição.

"Suponha o leitor que possuía duzentos escravos no dia 12 de maio, e que os perdeu com a lei de 13 de maio. Chegava eu ao seu estabelecimento, e perguntava-lhe:
- Os seus libertos ficaram todos?
- Metade só; ficaram cem. Os outros cem dispersaram-se; consta-me que andam por Santo Antônio de Pádua.
- Quer o senhor vender-mos?
Espanto do leitor; eu, explicando:
- Vender-mos todos, tanto os que ficaram, como os que fugiram.
O leitor assombrado:
- Mas, senhor, que interesse pode ter o senhor...
- Não lhe importe isso. Vende-mos?
- Libertos não se vendem.
- É verdade, mas a escritura de venda terá a data de 29 de abril; nesse caso, não foi o senhor que perdeu os escravos, fui eu. Os preços marcados na escritura serão os da tabela da lei de 1885; mas eu realmente não dou mais de dez mil-réis por cada um."

VIII

Machado de Assis, que o crítico americano Harold Bloom considera o "maior literato negro surgido até o presente" deixou-nos um legado artístico ímpar no Brasil e na literatura universal de todos os tempos. Por ele pudemos conhecer melhor a sociedade imperial brasileira e com ele, entrarmos no átrio dos conflitos da sociedade republicana que se anunciava, sem historicismo, sem sociologismo, sem programatismo panfletário. Falando de homens e mulheres de seu tempo na provinciana capital federal, o Rio de Janeiro que os navios estrangeiros procuravam evitar com medo das contaminações epidêmicas da região, o autor fixou, como nenhum outro, em imagens de poética sobriedade, não apenas as cores locais de quadros sociais inesquecíveis, mas também as finas incertezas e ásperas decisões da alma humana, suas silenciosas perversidades, seus levianos conflitos morais, a profundeza das dores reparáveis, a exlusividade substituível dos amores, a densidade dos vazios feita de presenças impositivas e de imposições de ausências plenas, a religiosidade desconfiada de um narrador que desconfia, como num meta-Eclesiastes de seu ceticismo e de sua própria desconfiança.

Não há em Machado de Assis a tentação do fácil nem tampouco a tipificação do difícil. Por isso, falando de seu tempo e de seu espaço local como não poderia deixar de fazer, fala-nos de uma atemporalidade, contudo histórica, do homem prisioneiro de sua eterna finitude. É como pensar Shakespeare e não ser levado à sociedade elizabetana, contexto necessário do texto que se lê ou da peça a que se assiste. Impossível fazê-lo, como impossível é também não desgarrar-se, pela leitura, das circunstâncias históricas e que dão vida às suas personagens e mergulhar na universalidade cômica e trágica de seus dramas, de nossos conflitos.

O legado literáro de Machado de Assis também é assim. Põe-nos na sala senhorial da casa do Engenho Novo e atira-nos, casmurros, à frustração anunciada da impossibilidade ontológica de nos reencontrarmos conosco mesmo, no tempo, em Mata Cavalos, ou vice-versa.

Com o legado estético, o legado ético. E é parte dele, com a mesma discreta perspicácia, o registro de situações de puro exercício de dominação senhorial de brancos em relação aos negros, ou de debochada esperteza negocial dos que se habituram a procurar tirar vantagem em tudo, como acontece nas duas crônicas aqui referidas.

É uma situação historicamente datada. Não deixa, contudo, de remeter-nos, pela própria historicidade, que lhe dá concretude, à força explicativa do paradigma social que apresenta.

É contra a permanência desse modelo de relações sociais constituído na tradição patriarcal branca da sociedade brasileira que se fez o esforço intelectual e político, caracterizado nas diferentes fases de sua evolução e transformação, tal como as apresentamos, para com ele romper e para definitivamente superá-lo.

As ações afirmativas do movimento negro e as políticas públicas de sua afirmação no Brasil são uma etapa contemporânea desse longo processo histórico. As cotas nas universidades públicas, uma parte estratégica desse movimento.




http://www.comciencia.br
contato@comciencia.br

http://www.comciencia.br/reportagens/negros/01.shtml

AÇÕES AFIRMATIVAS DA PERSPECTIVA DOS DIREITOS HUMANOS

FLAVIA PIOVESAN

Faculdade de Direito e Programa de Pós-Graduação
da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

RESUMO
Objetiva o artigo desenvolver uma análise a respeito das ações afirmativas sob a perspectiva dos direitos humanos. Inicialmente, trata da concepção contemporânea de direitos humanos, introduzida pela Declaração Universal de 1948, com ênfase na universalidade,indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos. Em um segundo momento sãoapreciadas as ações afirmativas da perspectiva dos direitos humanos, com destaque dos valores da igualdade e diversidade. Por fim, são avaliadas as perspectivas e desafios para a implementação da igualdade étnico-racial na ordem contemporânea.

AÇÃO AFIRMATIVA – DIREITOS HUMANOS – DISCRIMINAÇÃO RACIAL – IGUALDADE
DE OPORTUNIDADES

ABSTRACT

AFFIRMATIVE ACTION FROM A HUMAN RIGHTS PERSPECTIVE. The article aims to
develop an analysis on affirmative action from a human rights perspective. Initially, it deals with the contemporary conception of human rights, introduced by the Universal Declaration of 1948, stressing their universality, indivisibility, and interdependence. At a second stage, affirmative action is analyzed from a human rights perspective, stressing the values of egalitarianism and diversity. Finally, the perspectives and challenges to implement ethnic-racial egalitarianism in the contemporary order are assessed.

AFFIRMATIVE ACTION – HUMAN RIGHTS – RACIAL DISCRIMINATION – EQUAL
OPPORTUNITIES
Cadernos de Pesquisa, v. 35, n. 124, p. 43-55, jan./abr. 2005 43
Este texto embasou a intervenção “Ações Afirmativas sob a Perspectiva dos Direitos Humanos”, apresentada na Conferência Internacional sobre Ação Afirmativa e Direitos Humanos, no Rio de Janeiro, em 16 e 17 de julho de 2004.
44 Cadernos de Pesquisa, v. 35, n. 124, jan./abr. 2005
Flavia Piovesan

Focalizarei este tema pelo prisma jurídico, destacando três reflexões centrais:
a concepção contemporânea de direitos humanos, o modo de conceber
as ações afirmativas da perspectiva dos direitos humanos e as perspectivas e
desafios para a implementação da igualdade étnico-racial na ordem contemporânea.
A CONCEPÇÃO CONTEMPORÂNEA DE DIREITOS HUMANOS
Como reivindicações morais, os direitos humanos nascem quando devem
e podem nascer. Como realça Norberto Bobbio (1988), os direitos humanos
não nascem todos de uma vez nem de uma vez por todas. Para Hannah
Arendt (1979), os direitos humanos não são um dado, mas um construído, uma
invenção humana em constante processo de construção e reconstrução1. Compõem
um construído axiológico, fruto da nossa história, de nosso passado, de
nosso presente, fundamentado em um espaço simbólico de luta e ação social.
No dizer de Joaquin Herrera Flores, os direitos humanos compõem a nossa
racionalidade de resistência, na medida em que traduzem processos que abrem
e consolidam espaços de luta pela dignidade humana. Realçam, sobretudo, a
esperança de um horizonte moral, pautado pela gramática da inclusão, refletindo
a plataforma emancipatória de nosso tempo.
Ao adotar o prisma histórico, cabe realçar que a Declaração de 1948
inovou extraordinariamente a gramática dos direitos humanos, ao introduzir a
chamada concepção contemporânea de direitos humanos, marcada pela universalidade
e indivisibilidade desses direitos. Universalidade porque clama pela
extensão universal dos direitos humanos, com a crença de que a condição de
pessoa é o requisito único para a titularidade de direitos, considerando o ser
humano como essencialmente moral, dotado de unicidade existencial e dignidade.
Indivisibilidade porque, ineditamente, o catálogo dos direitos civis e po-
1. A respeito ver também Celso Lafer, 1988. No mesmo sentido afirma Ignacy Sachs: “Não se insistirá nunca o bastante sobre o fato de que a ascensão dos direitos é fruto de lutas, que os direitos são conquistados, às vezes, com barricadas, em um processo histórico cheio de vicissitudes, por meio do qual as necessidades e as aspirações se articulam em reivindicações
e em estandartes de luta antes de serem reconhecidos como direitos” (1998, p.156). Para Allan Rosas: “O conceito de direitos humanos é sempre progressivo. […] O debate a respeito do que são os direitos humanos e como devem ser definidos é parte e parcela de nossa história, de nosso passado e de nosso presente” (1995, p. 243).
Cadernos de Pesquisa, v. 35, n. 124, jan./abr. 2005 45
Ações afirmativas da...
líticos é conjugado ao catálogo dos direitos econômicos, sociais e culturais. A
Declaração de 1948 combina o discurso liberal e o discurso social da cidadania,
conjugando o valor da liberdade ao valor da igualdade.
A partir da Declaração de 1948, começa a desenvolver-se o Direito Internacional
dos Direitos Humanos, mediante a adoção de inúmeros instrumentos
internacionais de proteção. A Declaração de 1948 confere lastro axiológico
e unidade valorativa a esse campo do Direito, com ênfase na universalidade,
indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos.
O processo de universalização dos direitos humanos permitiu a formação
de um sistema internacional de proteção desses direitos. Esse sistema é
integrado por tratados internacionais de proteção que refletem, sobretudo, a
consciência ética contemporânea compartilhada pelos Estados, na medida em
que invocam o consenso internacional acerca de temas centrais dos direitos
humanos, fixando parâmetros protetivos mínimos. Nesse sentido, cabe destacar
que até 2003 o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos contava
com 149 Estados-partes, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais
e Culturais contava com 146 Estados-partes, a Convenção contra a Tortura
contava com 132 Estados-partes, a Convenção sobre a Eliminação de Todas
as Formas de Discriminação Racial contava com 167 Estados-partes, a
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a
Mulher contava com 170 Estados-partes, e a Convenção sobre os Direitos da
Criança apresentava a mais ampla adesão, com 191 Estados-partes2. O elevado
número de Estados-partes desses tratados simboliza o grau de consenso
internacional a respeito de temas centrais voltados aos direitos humanos.
Ao lado do sistema normativo global, surgem os sistemas regionais de
proteção, que buscam internacionalizar os direitos humanos nos planos regionais,
particularmente na Europa, América e África. Consolida-se, assim, a convivência
do sistema global da Organização das Nações Unidas – ONU – com
instrumentos do sistema regional, por sua vez, integrado com o sistema americano,
o europeu e o africano de proteção aos direitos humanos.
Os sistemas global e regional não são dicotômicos, mas complementares.
Inspirados pelos valores e princípios da Declaração Universal, compõem
o espectro instrumental de proteção dos direitos humanos no plano interna-
2. A respeito, consultar Human Development Report (2003).
46 Cadernos de Pesquisa, v. 35, n. 124, jan./abr. 2005
Flavia Piovesan
Nessa ótica, os diversos sistemas de proteção de direitos humanos
interagem em benefício dos indivíduos protegidos. Ao adotar o valor da primazia
da pessoa humana, esses sistemas complementam-se, somando-se ao
sistema nacional de proteção a fim de proporcionar a maior efetividade possível
na tutela e promoção de direitos fundamentais. Estes são a lógica e o conjunto
de princípios próprios do Direito dos Direitos Humanos.

AS AÇÕES AFIRMATIVAS DA PERSPECTIVA
DOS DIREITOS HUMANOS
Como já mencionado, a partir da Declaração Universal de 1948, começa
a desenvolver-se o Direito Internacional dos Direitos Humanos, mediante a
adoção de inúmeros tratados internacionais voltados à proteção de direitos fundamentais.
A primeira fase de proteção dos direitos humanos foi marcada pela tônica
da proteção geral, que expressava o temor da diferença (que no nazismo
havia sido orientada para o extermínio) com base na igualdade formal. A título
de exemplo, basta avaliar quem é o destinatário da Declaração de 1948, bem
como basta atentar para a Convenção para a Prevenção e Repressão ao Crime
de Genocídio, também de 1948, que pune a lógica da intolerância pautada
na destruição do “outro” em razão de sua nacionalidade, etnia, raça ou religião.
Torna-se, contudo, insuficiente tratar o indivíduo de forma genérica, geral
e abstrata. Faz-se necessária a especificação do sujeito de direito, que passa a
ser visto em sua peculiaridade e particularidade. Nessa ótica determinados
sujeitos de direito ou determinadas violações de direitos exigem uma resposta
específica e diferenciada. Vale dizer, na esfera internacional, se uma primeira
vertente de instrumentos internacionais nasce com a vocação de proporcionar
uma proteção geral, genérica e abstrata, refletindo o próprio temor da diferença,
percebe-se, posteriormente, a necessidade de conferir a determinados
grupos uma proteção especial e particularizada, em face de sua própria
vulnerabilidade. Isso significa que a diferença não mais seria utilizada para a aniquilação de direitos, mas, ao revés, para sua promoção.
Nesse cenário, por exemplo a população afro-descendente, as mulheres,
as crianças e demais grupos devem ser vistos nas especificidades e pecuCadernos
de Pesquisa, v. 35, n. 124, jan./abr. 2005 47
Ações afirmativas da...

sua condição social. Ao lado do direito à igualdade, surge também,
como direito fundamental, o direito à diferença. Importa o respeito à diferença
e à diversidade, o que lhes assegura um tratamento especial.
Destacam-se, assim, três vertentes no que tange à concepção da igualdade:
a. igualdade formal, reduzida à fórmula “todos são iguais perante a lei”
(que no seu tempo foi crucial para a abolição de privilégios); b. igualdade material,
correspondente ao ideal de justiça social e distributiva (igualdade orientada
pelo critério socioeconômico); e c. igualdade material, correspondente ao
ideal de justiça como reconhecimento de identidades (igualdade orientada pelos
critérios gênero, orientação sexual, idade, raça, etnia e demais critérios).
Para Nancy Fraser, a justiça exige simultaneamente redistribuição e reconhecimento
de identidades. Como atesta a autora:
O reconhecimento não pode reduzir-se à distribuição, porque o status na sociedade
não decorre simplesmente em razão da classe. Tomemos o exemplo
de um banqueiro afro-americano de Wall Street, que não pode conseguir um
táxi. Neste caso, a injustiça da falta de reconhecimento tem pouco a ver com a
má distribuição. [...] Reciprocamente, a distribuição não pode reduzir-se ao
reconhecimento, porque o acesso aos recursos não decorre simplesmente em
razão de status. Tomemos, como exemplo, um trabalhador industrial especializado,
que fica desempregado em virtude do fechamento da fábrica em que
trabalha, em vista de uma fusão corporativa especulativa. Nesse caso, a injustiça
da má distribuição tem pouco a ver com a falta de reconhecimento. [...]
Proponho desenvolver o que chamo concepção bidimensional da justiça. Essa
concepção trata da redistribuição e do reconhecimento como perspectivas e
dimensões distintas da justiça. Sem reduzir uma a outra, abarca ambas em algo
mais amplo (2001, p.55-56).
Há, assim, o caráter bidimensional da justiça: redistribuição somada ao
reconhecimento. No mesmo sentido, Boaventura de Souza Santos (2003) afirma
que apenas a exigência do reconhecimento e da redistribuição permite a
realização da igualdade3. Ainda acrescenta:
3. A respeito ver ainda na mesma obra: “Por uma concepção multicultural de direitos humanos”,
p. 429-461.
48 Cadernos de Pesquisa, v. 35, n. 124, jan./abr. 2005
Flavia Piovesan
...temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos
o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a
necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença
que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades. (p.56)
É nesse cenário que as Nações Unidas aprovam, em 1965, a Convenção
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, ratificada
hoje por 167 Estados, dentre eles o Brasil (desde 1968).
Desde seu preâmbulo, essa Convenção assinala que qualquer “doutrina
de superioridade baseada em diferenças raciais é cientificamente falsa, moralmente
condenável, socialmente injusta e perigosa, inexistindo justificativa para
a discriminação racial, em teoria ou prática, em lugar algum”. Adiciona a urgência
de adotar-se todas as medidas necessárias para eliminar a discriminação racial
em todas as suas formas e manifestações e para prevenir e combater doutrinas
e práticas racistas.
O artigo 1º da Convenção define a discriminação racial como
...qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor,
descendência ou origem nacional ou étnica, que tenha o propósito ou o efeito
de anular ou prejudicar o reconhecimento, gozo ou exercício em pé de igualdade
dos direitos humanos e liberdades fundamentais.
Vale dizer, a discriminação significa toda distinção, exclusão, restrição ou
preferência que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o exercício,
em igualdade de condições, dos direitos humanos e liberdades fundamentais
nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro
campo. Logo, a discriminação significa sempre desigualdade. Esta mesma lógica
inspirou a definição de discriminação contra a mulher, quando da adoção da
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a
Mulher pela ONU, em 1979.
A discriminação ocorre quando somos tratados como iguais em situações
diferentes, e como diferentes em situações iguais.
Como enfrentar a problemática da discriminação?
No âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, destacamse
duas estratégias: a. repressiva punitiva (que tem por objetivo punir, proibir
e eliminar a discriminação; b. promocional (que tem por objetivo promover,
fomentar e avançar a igualdade).
Cadernos de Pesquisa, v. 35, n. 124, jan./abr. 2005 49
Ações afirmativas da...
Na vertente repressiva punitiva, há a urgência de erradicar-se todas as
formas de discriminação. O combate à discriminação é medida fundamental
para que se garanta o pleno exercício dos direitos civis e políticos, como também
dos direitos sociais, econômicos e culturais.
Se o combate à discriminação é medida emergencial à implementação do
direito à igualdade, por si só é, todavia, medida insuficiente. Vale dizer, é fundamental
conjugar a vertente repressiva punitiva com a vertente promocional.
Faz-se necessário combinar a proibição da discriminação com políticas
compensatórias que acelerem a igualdade enquanto como processo. Isto é, para
assegurar a igualdade não basta apenas proibir a discriminação, mediante legislação
repressiva. São essenciais as estratégias promocionais capazes de estimular
a inserção e inclusão de grupos socialmente vulneráveis nos espaços
sociais. Com efeito, a igualdade e a discriminação pairam sob o binômio inclusão/
exclusão. Enquanto a igualdade pressupõe formas de inclusão social, a discriminação
implica violenta exclusão e intolerância à diferença e à diversidade.
O que se percebe é que a proibição da exclusão, em si mesma, não resulta
automaticamente na inclusão. Logo, não é suficiente proibir a exclusão, quando
o que se pretende é garantir a igualdade de fato, com a efetiva inclusão social
de grupos que sofreram e sofrem um consistente padrão de violência e discriminação.
Nesse sentido, como poderoso instrumento de inclusão social, situamse
as ações afirmativas. Elas constituem medidas especiais e temporárias que,
buscando remediar um passado discriminatório, objetivam acelerar o processo
com o alcance da igualdade substantiva por parte de grupos vulneráveis,
como as minorias étnicas e raciais e as mulheres, entre outros grupos.
As ações afirmativas, como políticas compensatórias adotadas para aliviar
e remediar as condições resultantes de um passado de discriminação, cumprem
uma finalidade pública decisiva para o projeto democrático: assegurar a
diversidade e a pluralidade social. Constituem medidas concretas que viabilizam
o direito à igualdade, com a crença de que a igualdade deve moldar-se no respeito
à diferença e à diversidade. Por meio delas transita-se da igualdade formal
para a igualdade material e substantiva.
Por essas razões a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação Racial prevê, no artigo 1º, parágrafo 4º, a possibilidade de
“discriminação positiva” (a chamada “ação afirmativa”) mediante a adoção de
medidas especiais de proteção ou incentivo a grupos ou indivíduos, visando a
50 Cadernos de Pesquisa, v. 35, n. 124, jan./abr. 2005
Flavia Piovesan
promover sua ascensão na sociedade até um nível de equiparação com os demais.
As ações afirmativas constituem medidas especiais e temporárias que, buscando
remediar um passado discriminatório, objetivam acelerar o processo com
o alcance da igualdade substantiva por parte dos grupos socialmente vulneráveis,
como as minorias étnicas e raciais, entre outros grupos.
A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
contra a Mulher também contempla a possibilidade jurídica de uso das ações
afirmativas, pela qual os Estados podem adotam medidas especiais temporárias,
visando a acelerar o processo de igualização de status entre homens e mulheres.
Tais medidas cessarão quando alcançado o seu objetivo. São, portanto,
medidas compensatórias para remediar as desvantagens históricas, aliviando
o passado discriminatório sofrido pelo grupo social em questão.
Quanto ao prisma racial, importa destacar que o documento oficial brasileiro
apresentado à Conferência das Nações Unidas contra o Racismo, em Durban,
na África do Sul (31 de agosto a 7 de setembro de 2001), defendeu, do mesmo
modo, a adoção de medidas afirmativas para a população afro-descendente
nas áreas de educação e trabalho. O documento propôs a adoção de ações
afirmativas para garantir o maior acesso de afro-descendentes às universidades
públicas, bem como a utilização, em licitações públicas, de um critério de
desempate que considere a presença de afro-descendentes, homossexuais e
mulheres no quadro funcional das empresas concorrentes. A Conferência de
Durban, em suas recomendações, pontualmente nos parágrafos 107 e 108,
endossa a importância de os Estados adotarem ações afirmativas para aqueles
que foram vítimas de discriminação racial, xenofobia e outras formas de intolerância
correlatas.
No Direito brasileiro, a Constituição Federal de 1988 estabelece importantes
dispositivos que demarcam a busca da igualdade material, que transcende
a igualdade formal. A título de registro, destaca-se o artigo 7º, inciso XX, que
trata da proteção do mercado de trabalho da mulher mediante incentivos específicos,
bem como o artigo 37, inciso VII, que determina que a lei reservará
percentual de cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência.
Acrescente-se ainda a chamada “Lei das Cotas”4 de 1995 (Lei n. 9.100/
4. Note-se que esta lei foi posteriormente alterada pela Lei n. 9.504/97, a qual dispõe que cada
partido ou coligação partidária deverá reservar o mínimo de 30% e o máximo de 70% para
candidaturas de cada sexo.
Cadernos de Pesquisa, v. 35, n. 124, jan./abr. 2005 51
Ações afirmativas da...
95), que obriga sejam reservados às mulheres ao menos 20% dos cargos para
as candidaturas às eleições municipais. Adicione-se também o Programa Nacional
de Direitos Humanos, que faz expressa alusão às políticas compensatórias,
prevendo como meta o desenvolvimento de ações afirmativas em favor
de grupos socialmente vulneráveis. Some-se, ademais, o Programa de Ações
Afirmativas na Administração Pública Federal e a adoção de cotas para afrodescendentes
em universidades – como é o caso da Universidade Estadual do
Rio de Janeiro – UERJ –, da Universidade do Estado da Bahia – Uneb –, da Universidade
de Brasília – UnB –, da Universidade Federal do Paraná – UFPR –,
entre outras.
Ora, se a raça e etnia no país sempre foram critérios utilizados para excluir
os afro-descendentes, que sejam hoje utilizados para, ao revés, incluí-los.
Na esfera universitária, por exemplo, dados do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada – Ipea – revelam que menos de 2% dos estudantes afrodescendentes
estão em universidades públicas ou privadas. Isso faz com que
as universidades sejam territórios brancos. Note-se que a universidade é um
espaço de poder, já que o diploma pode ser um passaporte para ascensão social.
É necessário democratizar o poder e, para isso, há que se democratizar o acesso
ao poder, vale dizer, o acesso ao passaporte universitário.
Em um país em que os afro-descendentes são 64% dos pobres e 69%
dos indigentes5, faz-se necessária a adoção de ações afirmativas em benefício
da população afro-descendente, em especial nas áreas da educação e do trabalho.
Quanto ao traballho, o “Mapa da População Negra no Mercado de Trabalho”,
documento elaborado pelo Instituto Sindical Interamericano pela Igualdade
Racial – Inspir –, em convênio com o Departamento Intersindical de
Estatística e Estudos Sócio-Econômicos – Dieese –, em 1999, demonstra que
o(a) trabalhador(a) afro-descendente convive mais intensamente com o desemprego,
ocupa os postos de trabalho mais precários ou vulneráveis em relação
aos não afro-descendentes, tem mais instabilidade no emprego, está mais presente
no “chão da fábrica” ou na base da produção, apresenta níveis de instrução
inferiores aos dos trabalhadores não afro-descendentes e possui uma jornada
de trabalho maior do que a do trabalhador não afro-descendente.
5. Segundo dados do Ipea, no Índice de Desenvolvimento Humano geral – IDH (2000), o Brasil
ocupa o 74o lugar, mas no recorte étnico-racial, o IDH relativo à população afro-descendente
ocupa a 108a posição, ao passo que o IDH relativo à população branca indica a 43a posição.
52 Cadernos de Pesquisa, v. 35, n. 124, jan./abr. 2005
Flavia Piovesan
É necessário ainda reconhecer que a complexa realidade brasileira traduz
um alarmante quadro de exclusão social e discriminação como termos interligados
a compor um ciclo vicioso em que a exclusão implica discriminação
e a discriminação implica exclusão.
Nesse cenário, as ações afirmativas surgem como medida urgente e
necessária. Tais ações encontram amplo respaldo jurídico, seja na Constituição
(ao assegurar a igualdade material, prevendo ações afirmativas para os
grupos socialmente vulneráveis), seja nos tratados internacionais ratificados
pelo Brasil.
A experiência no Direito Comparado (em particular a do Direito norteamericano)
comprova que as ações afirmativas proporcionam maior igualdade,
na medida em que asseguram maior possibilidade de participação de grupos
sociais vulneráveis nas instituições públicas e privadas. A respeito, a
Plataforma de Ação de Beijing de 1995 afirma, em seu parágrafo 187, que em
alguns países a adoção da ação afirmativa tem garantido a representação de
33,3% (ou mais) de mulheres em cargos da administração nacional ou local.
Isso significa que essas ações constituem relevantes medidas para a implementação
do direito à igualdade. Faz-se, assim, emergencial a adoção de
ações afirmativas que promovam medidas compensatórias voltadas à concretização
da igualdade racial.
PERSPECTIVAS E DESAFIOS PARA A IMPLEMENTAÇÃO DA IGUALDADE
ÉTNICO-RACIAL NA ORDEM CONTEMPORÂNEA
A implementação do direito à igualdade é tarefa fundamental à qualquer
projeto democrático, já que em última análise a democracia significa a igualdade
no exercício dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais. A
busca democrática requer fundamentalmente o exercício em igualdade de
condições dos direitos humanos elementares.
Se a democracia confunde-se com a igualdade, a implementação do direito
à igualdade, por sua vez, impõe tanto o desafio de eliminar toda e qualquer
forma de discriminação como o desafio de promover a igualdade.
Para a implementação do direito à igualdade, é decisivo que se intensifiquem
e aprimorem ações em prol do alcance dessas duas metas que, por serem
indissociáveis, hão de ser desenvolvidas de forma conjugada. Há, assim,
que se combinar estratégias repressivas e promocionais que propiciem a imCadernos
de Pesquisa, v. 35, n. 124, jan./abr. 2005 53
Ações afirmativas da...
plementação do direito à igualdade. Reitere-se que a Convenção sobre a Eliminação
de Todas as Formas de Discriminação Racial, ratificada hoje por mais
de 167 Estados (dentre eles o Brasil), aponta para a dupla vertente: a repressiva
punitiva e a promocional. Vale dizer, os Estados-partes assumem não apenas
o dever de adotar medidas que proíbam a discriminação racial, mas também
o dever de promover a igualdade mediante a implementação de medidas especiais
e temporárias que acelerem o processo de construção da igualdade racial.
Considerando as especificidades do Brasil, que é o segundo país do
mundo com o maior contingente populacional afro-descendente (45% da
população brasileira, perdendo apenas para a Nigéria), tendo sido, contudo, o
último país do mundo ocidental a abolir a escravidão, faz-se emergencial a
adoção de medidas eficazes para romper com o legado de exclusão étnicoracial,
que compromete não só a plena vigência dos direitos humanos, mas
também a própria democracia no país – sob pena de termos democracia sem
cidadania.
Se no início deste texto acentuava-se que os direitos humanos não são
um dado, mas um construído, enfatiza-se agora que a violação desses direitos
também o é. Ou seja, as violações, as exclusões, as discriminações, as intolerâncias,
os racismos, as injustiças raciais são um construído histórico a ser urgentemente
desconstruído, sendo emergencial a adoção de medidas eficazes
para romper com o legado de exclusão étnico-racial. Há que se enfrentar essas
amarras, mutiladoras do protagonismo, da cidadania e da dignidade da
população afro-descendente.
Destacam-se, nesse sentido, as palavras de Abdias do Nascimento, ao
apontar a necessidade da
...inclusão do povo afro-brasileiro, um povo que luta duramente há cinco séculos
no país, desde os seus primórdios, em favor dos direitos humanos. É o
povo cujos direitos humanos foram mais brutalmente agredidos ao longo da
história do país: o povo que durante séculos não mereceu nem o reconhecimento
de sua própria condição humana.
A implementação do direito à igualdade racial há de ser um imperativo
ético-político-social, capaz de enfrentar o legado discriminatório que tem negado
à metade da população brasileira o pleno exercício de seus direitos e de
liberdades fundamentais.
54 Cadernos de Pesquisa, v. 35, n. 124, jan./abr. 2005
Flavia Piovesan
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARENDT, H. As Origens do totalitarismo. Rio de Janeiro: Documentário, 1979
BOBBIO, N. Era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1988. [Trad. Carlos Nelson Coutinho]
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado,
1988.
BRASIL. Decreto n. 1.904, de 13/5/1996. Institui o Programa Nacional de Direitos Humanos,
que ineditamente atribui aos direitos humanos o status de política pública governamental,
contendo propostas de ações governamentais para a proteção e promoção dos direitos
civis e políticos no Brasil.
. Lei n. 9.100/95. Estabelece normas para as eleições, dispondo que cada
partido ou coligação partidária deverá reservar o mínimo de vinte por cento para candidaturas
de mulheres.
. Lei n. 9.504/97. Estabelece normas para as eleições, dispondo que cada
partido ou coligação partidária deverá reservar o mínimo de trinta por cento e o máximo de
setenta por cento para candidaturas de cada sexo.
FLORES, J. H. Direitos humanos, interculturalidade e racionalidade de resistência. (mimeo)
FRASER, N. Redistribución, reconocimiento y participación: hacia un concepto integrado de
la justicia. In: ORGANIZACIÓN DE LAS NACIONES UNIDAS PARA LA EDUCACIÓN, LA
CIENCIA Y LA CULTURA. Informe mundial sobre la cultura: 2000-2001.
HUMAN DEVELOPMENT REPORT. New York: UNDP; Oxford: Oxford University Press,
2003.
LAFER, C. A Reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah
Arendt. São Paulo: Cia das Letras, 1988.
ROSAS, A. So called rights of the third generation. In: EIDE, A.; KRAUSE, C.; ROSAS, A.
Economic, social, and cultural rights. Boston: Martinus Nijhoff Publishers; Londres: Dordrecht,
1995.
SACHS, I. Desenvolvimento, direitos humanos e cidadania. In: PINHEIRO, P. S.; GUIMARÃES,
S. P. (orgs.). Direitos humanos no século XXI. Brasília: Ipri, Fundação Alexandre de
Gusmão, 1998.
SANTOS, B. de S. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitanismo multicultural.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. Introdução: para ampliar o cânone do reconhecimento,
da diferença e da igualdade, p.56.
Cadernos de Pesquisa, v. 35, n. 124, jan./abr. 2005 55

piovesan@dialdata.com.br