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domingo, 21 de março de 2010

AÇÕES AFIRMATIVAS DA PERSPECTIVA DOS DIREITOS HUMANOS

FLAVIA PIOVESAN

Faculdade de Direito e Programa de Pós-Graduação
da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

RESUMO
Objetiva o artigo desenvolver uma análise a respeito das ações afirmativas sob a perspectiva dos direitos humanos. Inicialmente, trata da concepção contemporânea de direitos humanos, introduzida pela Declaração Universal de 1948, com ênfase na universalidade,indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos. Em um segundo momento sãoapreciadas as ações afirmativas da perspectiva dos direitos humanos, com destaque dos valores da igualdade e diversidade. Por fim, são avaliadas as perspectivas e desafios para a implementação da igualdade étnico-racial na ordem contemporânea.

AÇÃO AFIRMATIVA – DIREITOS HUMANOS – DISCRIMINAÇÃO RACIAL – IGUALDADE
DE OPORTUNIDADES

ABSTRACT

AFFIRMATIVE ACTION FROM A HUMAN RIGHTS PERSPECTIVE. The article aims to
develop an analysis on affirmative action from a human rights perspective. Initially, it deals with the contemporary conception of human rights, introduced by the Universal Declaration of 1948, stressing their universality, indivisibility, and interdependence. At a second stage, affirmative action is analyzed from a human rights perspective, stressing the values of egalitarianism and diversity. Finally, the perspectives and challenges to implement ethnic-racial egalitarianism in the contemporary order are assessed.

AFFIRMATIVE ACTION – HUMAN RIGHTS – RACIAL DISCRIMINATION – EQUAL
OPPORTUNITIES
Cadernos de Pesquisa, v. 35, n. 124, p. 43-55, jan./abr. 2005 43
Este texto embasou a intervenção “Ações Afirmativas sob a Perspectiva dos Direitos Humanos”, apresentada na Conferência Internacional sobre Ação Afirmativa e Direitos Humanos, no Rio de Janeiro, em 16 e 17 de julho de 2004.
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Flavia Piovesan

Focalizarei este tema pelo prisma jurídico, destacando três reflexões centrais:
a concepção contemporânea de direitos humanos, o modo de conceber
as ações afirmativas da perspectiva dos direitos humanos e as perspectivas e
desafios para a implementação da igualdade étnico-racial na ordem contemporânea.
A CONCEPÇÃO CONTEMPORÂNEA DE DIREITOS HUMANOS
Como reivindicações morais, os direitos humanos nascem quando devem
e podem nascer. Como realça Norberto Bobbio (1988), os direitos humanos
não nascem todos de uma vez nem de uma vez por todas. Para Hannah
Arendt (1979), os direitos humanos não são um dado, mas um construído, uma
invenção humana em constante processo de construção e reconstrução1. Compõem
um construído axiológico, fruto da nossa história, de nosso passado, de
nosso presente, fundamentado em um espaço simbólico de luta e ação social.
No dizer de Joaquin Herrera Flores, os direitos humanos compõem a nossa
racionalidade de resistência, na medida em que traduzem processos que abrem
e consolidam espaços de luta pela dignidade humana. Realçam, sobretudo, a
esperança de um horizonte moral, pautado pela gramática da inclusão, refletindo
a plataforma emancipatória de nosso tempo.
Ao adotar o prisma histórico, cabe realçar que a Declaração de 1948
inovou extraordinariamente a gramática dos direitos humanos, ao introduzir a
chamada concepção contemporânea de direitos humanos, marcada pela universalidade
e indivisibilidade desses direitos. Universalidade porque clama pela
extensão universal dos direitos humanos, com a crença de que a condição de
pessoa é o requisito único para a titularidade de direitos, considerando o ser
humano como essencialmente moral, dotado de unicidade existencial e dignidade.
Indivisibilidade porque, ineditamente, o catálogo dos direitos civis e po-
1. A respeito ver também Celso Lafer, 1988. No mesmo sentido afirma Ignacy Sachs: “Não se insistirá nunca o bastante sobre o fato de que a ascensão dos direitos é fruto de lutas, que os direitos são conquistados, às vezes, com barricadas, em um processo histórico cheio de vicissitudes, por meio do qual as necessidades e as aspirações se articulam em reivindicações
e em estandartes de luta antes de serem reconhecidos como direitos” (1998, p.156). Para Allan Rosas: “O conceito de direitos humanos é sempre progressivo. […] O debate a respeito do que são os direitos humanos e como devem ser definidos é parte e parcela de nossa história, de nosso passado e de nosso presente” (1995, p. 243).
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líticos é conjugado ao catálogo dos direitos econômicos, sociais e culturais. A
Declaração de 1948 combina o discurso liberal e o discurso social da cidadania,
conjugando o valor da liberdade ao valor da igualdade.
A partir da Declaração de 1948, começa a desenvolver-se o Direito Internacional
dos Direitos Humanos, mediante a adoção de inúmeros instrumentos
internacionais de proteção. A Declaração de 1948 confere lastro axiológico
e unidade valorativa a esse campo do Direito, com ênfase na universalidade,
indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos.
O processo de universalização dos direitos humanos permitiu a formação
de um sistema internacional de proteção desses direitos. Esse sistema é
integrado por tratados internacionais de proteção que refletem, sobretudo, a
consciência ética contemporânea compartilhada pelos Estados, na medida em
que invocam o consenso internacional acerca de temas centrais dos direitos
humanos, fixando parâmetros protetivos mínimos. Nesse sentido, cabe destacar
que até 2003 o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos contava
com 149 Estados-partes, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais
e Culturais contava com 146 Estados-partes, a Convenção contra a Tortura
contava com 132 Estados-partes, a Convenção sobre a Eliminação de Todas
as Formas de Discriminação Racial contava com 167 Estados-partes, a
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a
Mulher contava com 170 Estados-partes, e a Convenção sobre os Direitos da
Criança apresentava a mais ampla adesão, com 191 Estados-partes2. O elevado
número de Estados-partes desses tratados simboliza o grau de consenso
internacional a respeito de temas centrais voltados aos direitos humanos.
Ao lado do sistema normativo global, surgem os sistemas regionais de
proteção, que buscam internacionalizar os direitos humanos nos planos regionais,
particularmente na Europa, América e África. Consolida-se, assim, a convivência
do sistema global da Organização das Nações Unidas – ONU – com
instrumentos do sistema regional, por sua vez, integrado com o sistema americano,
o europeu e o africano de proteção aos direitos humanos.
Os sistemas global e regional não são dicotômicos, mas complementares.
Inspirados pelos valores e princípios da Declaração Universal, compõem
o espectro instrumental de proteção dos direitos humanos no plano interna-
2. A respeito, consultar Human Development Report (2003).
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Nessa ótica, os diversos sistemas de proteção de direitos humanos
interagem em benefício dos indivíduos protegidos. Ao adotar o valor da primazia
da pessoa humana, esses sistemas complementam-se, somando-se ao
sistema nacional de proteção a fim de proporcionar a maior efetividade possível
na tutela e promoção de direitos fundamentais. Estes são a lógica e o conjunto
de princípios próprios do Direito dos Direitos Humanos.

AS AÇÕES AFIRMATIVAS DA PERSPECTIVA
DOS DIREITOS HUMANOS
Como já mencionado, a partir da Declaração Universal de 1948, começa
a desenvolver-se o Direito Internacional dos Direitos Humanos, mediante a
adoção de inúmeros tratados internacionais voltados à proteção de direitos fundamentais.
A primeira fase de proteção dos direitos humanos foi marcada pela tônica
da proteção geral, que expressava o temor da diferença (que no nazismo
havia sido orientada para o extermínio) com base na igualdade formal. A título
de exemplo, basta avaliar quem é o destinatário da Declaração de 1948, bem
como basta atentar para a Convenção para a Prevenção e Repressão ao Crime
de Genocídio, também de 1948, que pune a lógica da intolerância pautada
na destruição do “outro” em razão de sua nacionalidade, etnia, raça ou religião.
Torna-se, contudo, insuficiente tratar o indivíduo de forma genérica, geral
e abstrata. Faz-se necessária a especificação do sujeito de direito, que passa a
ser visto em sua peculiaridade e particularidade. Nessa ótica determinados
sujeitos de direito ou determinadas violações de direitos exigem uma resposta
específica e diferenciada. Vale dizer, na esfera internacional, se uma primeira
vertente de instrumentos internacionais nasce com a vocação de proporcionar
uma proteção geral, genérica e abstrata, refletindo o próprio temor da diferença,
percebe-se, posteriormente, a necessidade de conferir a determinados
grupos uma proteção especial e particularizada, em face de sua própria
vulnerabilidade. Isso significa que a diferença não mais seria utilizada para a aniquilação de direitos, mas, ao revés, para sua promoção.
Nesse cenário, por exemplo a população afro-descendente, as mulheres,
as crianças e demais grupos devem ser vistos nas especificidades e pecuCadernos
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sua condição social. Ao lado do direito à igualdade, surge também,
como direito fundamental, o direito à diferença. Importa o respeito à diferença
e à diversidade, o que lhes assegura um tratamento especial.
Destacam-se, assim, três vertentes no que tange à concepção da igualdade:
a. igualdade formal, reduzida à fórmula “todos são iguais perante a lei”
(que no seu tempo foi crucial para a abolição de privilégios); b. igualdade material,
correspondente ao ideal de justiça social e distributiva (igualdade orientada
pelo critério socioeconômico); e c. igualdade material, correspondente ao
ideal de justiça como reconhecimento de identidades (igualdade orientada pelos
critérios gênero, orientação sexual, idade, raça, etnia e demais critérios).
Para Nancy Fraser, a justiça exige simultaneamente redistribuição e reconhecimento
de identidades. Como atesta a autora:
O reconhecimento não pode reduzir-se à distribuição, porque o status na sociedade
não decorre simplesmente em razão da classe. Tomemos o exemplo
de um banqueiro afro-americano de Wall Street, que não pode conseguir um
táxi. Neste caso, a injustiça da falta de reconhecimento tem pouco a ver com a
má distribuição. [...] Reciprocamente, a distribuição não pode reduzir-se ao
reconhecimento, porque o acesso aos recursos não decorre simplesmente em
razão de status. Tomemos, como exemplo, um trabalhador industrial especializado,
que fica desempregado em virtude do fechamento da fábrica em que
trabalha, em vista de uma fusão corporativa especulativa. Nesse caso, a injustiça
da má distribuição tem pouco a ver com a falta de reconhecimento. [...]
Proponho desenvolver o que chamo concepção bidimensional da justiça. Essa
concepção trata da redistribuição e do reconhecimento como perspectivas e
dimensões distintas da justiça. Sem reduzir uma a outra, abarca ambas em algo
mais amplo (2001, p.55-56).
Há, assim, o caráter bidimensional da justiça: redistribuição somada ao
reconhecimento. No mesmo sentido, Boaventura de Souza Santos (2003) afirma
que apenas a exigência do reconhecimento e da redistribuição permite a
realização da igualdade3. Ainda acrescenta:
3. A respeito ver ainda na mesma obra: “Por uma concepção multicultural de direitos humanos”,
p. 429-461.
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...temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos
o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a
necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença
que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades. (p.56)
É nesse cenário que as Nações Unidas aprovam, em 1965, a Convenção
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, ratificada
hoje por 167 Estados, dentre eles o Brasil (desde 1968).
Desde seu preâmbulo, essa Convenção assinala que qualquer “doutrina
de superioridade baseada em diferenças raciais é cientificamente falsa, moralmente
condenável, socialmente injusta e perigosa, inexistindo justificativa para
a discriminação racial, em teoria ou prática, em lugar algum”. Adiciona a urgência
de adotar-se todas as medidas necessárias para eliminar a discriminação racial
em todas as suas formas e manifestações e para prevenir e combater doutrinas
e práticas racistas.
O artigo 1º da Convenção define a discriminação racial como
...qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor,
descendência ou origem nacional ou étnica, que tenha o propósito ou o efeito
de anular ou prejudicar o reconhecimento, gozo ou exercício em pé de igualdade
dos direitos humanos e liberdades fundamentais.
Vale dizer, a discriminação significa toda distinção, exclusão, restrição ou
preferência que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o exercício,
em igualdade de condições, dos direitos humanos e liberdades fundamentais
nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro
campo. Logo, a discriminação significa sempre desigualdade. Esta mesma lógica
inspirou a definição de discriminação contra a mulher, quando da adoção da
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a
Mulher pela ONU, em 1979.
A discriminação ocorre quando somos tratados como iguais em situações
diferentes, e como diferentes em situações iguais.
Como enfrentar a problemática da discriminação?
No âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, destacamse
duas estratégias: a. repressiva punitiva (que tem por objetivo punir, proibir
e eliminar a discriminação; b. promocional (que tem por objetivo promover,
fomentar e avançar a igualdade).
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Na vertente repressiva punitiva, há a urgência de erradicar-se todas as
formas de discriminação. O combate à discriminação é medida fundamental
para que se garanta o pleno exercício dos direitos civis e políticos, como também
dos direitos sociais, econômicos e culturais.
Se o combate à discriminação é medida emergencial à implementação do
direito à igualdade, por si só é, todavia, medida insuficiente. Vale dizer, é fundamental
conjugar a vertente repressiva punitiva com a vertente promocional.
Faz-se necessário combinar a proibição da discriminação com políticas
compensatórias que acelerem a igualdade enquanto como processo. Isto é, para
assegurar a igualdade não basta apenas proibir a discriminação, mediante legislação
repressiva. São essenciais as estratégias promocionais capazes de estimular
a inserção e inclusão de grupos socialmente vulneráveis nos espaços
sociais. Com efeito, a igualdade e a discriminação pairam sob o binômio inclusão/
exclusão. Enquanto a igualdade pressupõe formas de inclusão social, a discriminação
implica violenta exclusão e intolerância à diferença e à diversidade.
O que se percebe é que a proibição da exclusão, em si mesma, não resulta
automaticamente na inclusão. Logo, não é suficiente proibir a exclusão, quando
o que se pretende é garantir a igualdade de fato, com a efetiva inclusão social
de grupos que sofreram e sofrem um consistente padrão de violência e discriminação.
Nesse sentido, como poderoso instrumento de inclusão social, situamse
as ações afirmativas. Elas constituem medidas especiais e temporárias que,
buscando remediar um passado discriminatório, objetivam acelerar o processo
com o alcance da igualdade substantiva por parte de grupos vulneráveis,
como as minorias étnicas e raciais e as mulheres, entre outros grupos.
As ações afirmativas, como políticas compensatórias adotadas para aliviar
e remediar as condições resultantes de um passado de discriminação, cumprem
uma finalidade pública decisiva para o projeto democrático: assegurar a
diversidade e a pluralidade social. Constituem medidas concretas que viabilizam
o direito à igualdade, com a crença de que a igualdade deve moldar-se no respeito
à diferença e à diversidade. Por meio delas transita-se da igualdade formal
para a igualdade material e substantiva.
Por essas razões a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação Racial prevê, no artigo 1º, parágrafo 4º, a possibilidade de
“discriminação positiva” (a chamada “ação afirmativa”) mediante a adoção de
medidas especiais de proteção ou incentivo a grupos ou indivíduos, visando a
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promover sua ascensão na sociedade até um nível de equiparação com os demais.
As ações afirmativas constituem medidas especiais e temporárias que, buscando
remediar um passado discriminatório, objetivam acelerar o processo com
o alcance da igualdade substantiva por parte dos grupos socialmente vulneráveis,
como as minorias étnicas e raciais, entre outros grupos.
A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
contra a Mulher também contempla a possibilidade jurídica de uso das ações
afirmativas, pela qual os Estados podem adotam medidas especiais temporárias,
visando a acelerar o processo de igualização de status entre homens e mulheres.
Tais medidas cessarão quando alcançado o seu objetivo. São, portanto,
medidas compensatórias para remediar as desvantagens históricas, aliviando
o passado discriminatório sofrido pelo grupo social em questão.
Quanto ao prisma racial, importa destacar que o documento oficial brasileiro
apresentado à Conferência das Nações Unidas contra o Racismo, em Durban,
na África do Sul (31 de agosto a 7 de setembro de 2001), defendeu, do mesmo
modo, a adoção de medidas afirmativas para a população afro-descendente
nas áreas de educação e trabalho. O documento propôs a adoção de ações
afirmativas para garantir o maior acesso de afro-descendentes às universidades
públicas, bem como a utilização, em licitações públicas, de um critério de
desempate que considere a presença de afro-descendentes, homossexuais e
mulheres no quadro funcional das empresas concorrentes. A Conferência de
Durban, em suas recomendações, pontualmente nos parágrafos 107 e 108,
endossa a importância de os Estados adotarem ações afirmativas para aqueles
que foram vítimas de discriminação racial, xenofobia e outras formas de intolerância
correlatas.
No Direito brasileiro, a Constituição Federal de 1988 estabelece importantes
dispositivos que demarcam a busca da igualdade material, que transcende
a igualdade formal. A título de registro, destaca-se o artigo 7º, inciso XX, que
trata da proteção do mercado de trabalho da mulher mediante incentivos específicos,
bem como o artigo 37, inciso VII, que determina que a lei reservará
percentual de cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência.
Acrescente-se ainda a chamada “Lei das Cotas”4 de 1995 (Lei n. 9.100/
4. Note-se que esta lei foi posteriormente alterada pela Lei n. 9.504/97, a qual dispõe que cada
partido ou coligação partidária deverá reservar o mínimo de 30% e o máximo de 70% para
candidaturas de cada sexo.
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95), que obriga sejam reservados às mulheres ao menos 20% dos cargos para
as candidaturas às eleições municipais. Adicione-se também o Programa Nacional
de Direitos Humanos, que faz expressa alusão às políticas compensatórias,
prevendo como meta o desenvolvimento de ações afirmativas em favor
de grupos socialmente vulneráveis. Some-se, ademais, o Programa de Ações
Afirmativas na Administração Pública Federal e a adoção de cotas para afrodescendentes
em universidades – como é o caso da Universidade Estadual do
Rio de Janeiro – UERJ –, da Universidade do Estado da Bahia – Uneb –, da Universidade
de Brasília – UnB –, da Universidade Federal do Paraná – UFPR –,
entre outras.
Ora, se a raça e etnia no país sempre foram critérios utilizados para excluir
os afro-descendentes, que sejam hoje utilizados para, ao revés, incluí-los.
Na esfera universitária, por exemplo, dados do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada – Ipea – revelam que menos de 2% dos estudantes afrodescendentes
estão em universidades públicas ou privadas. Isso faz com que
as universidades sejam territórios brancos. Note-se que a universidade é um
espaço de poder, já que o diploma pode ser um passaporte para ascensão social.
É necessário democratizar o poder e, para isso, há que se democratizar o acesso
ao poder, vale dizer, o acesso ao passaporte universitário.
Em um país em que os afro-descendentes são 64% dos pobres e 69%
dos indigentes5, faz-se necessária a adoção de ações afirmativas em benefício
da população afro-descendente, em especial nas áreas da educação e do trabalho.
Quanto ao traballho, o “Mapa da População Negra no Mercado de Trabalho”,
documento elaborado pelo Instituto Sindical Interamericano pela Igualdade
Racial – Inspir –, em convênio com o Departamento Intersindical de
Estatística e Estudos Sócio-Econômicos – Dieese –, em 1999, demonstra que
o(a) trabalhador(a) afro-descendente convive mais intensamente com o desemprego,
ocupa os postos de trabalho mais precários ou vulneráveis em relação
aos não afro-descendentes, tem mais instabilidade no emprego, está mais presente
no “chão da fábrica” ou na base da produção, apresenta níveis de instrução
inferiores aos dos trabalhadores não afro-descendentes e possui uma jornada
de trabalho maior do que a do trabalhador não afro-descendente.
5. Segundo dados do Ipea, no Índice de Desenvolvimento Humano geral – IDH (2000), o Brasil
ocupa o 74o lugar, mas no recorte étnico-racial, o IDH relativo à população afro-descendente
ocupa a 108a posição, ao passo que o IDH relativo à população branca indica a 43a posição.
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É necessário ainda reconhecer que a complexa realidade brasileira traduz
um alarmante quadro de exclusão social e discriminação como termos interligados
a compor um ciclo vicioso em que a exclusão implica discriminação
e a discriminação implica exclusão.
Nesse cenário, as ações afirmativas surgem como medida urgente e
necessária. Tais ações encontram amplo respaldo jurídico, seja na Constituição
(ao assegurar a igualdade material, prevendo ações afirmativas para os
grupos socialmente vulneráveis), seja nos tratados internacionais ratificados
pelo Brasil.
A experiência no Direito Comparado (em particular a do Direito norteamericano)
comprova que as ações afirmativas proporcionam maior igualdade,
na medida em que asseguram maior possibilidade de participação de grupos
sociais vulneráveis nas instituições públicas e privadas. A respeito, a
Plataforma de Ação de Beijing de 1995 afirma, em seu parágrafo 187, que em
alguns países a adoção da ação afirmativa tem garantido a representação de
33,3% (ou mais) de mulheres em cargos da administração nacional ou local.
Isso significa que essas ações constituem relevantes medidas para a implementação
do direito à igualdade. Faz-se, assim, emergencial a adoção de
ações afirmativas que promovam medidas compensatórias voltadas à concretização
da igualdade racial.
PERSPECTIVAS E DESAFIOS PARA A IMPLEMENTAÇÃO DA IGUALDADE
ÉTNICO-RACIAL NA ORDEM CONTEMPORÂNEA
A implementação do direito à igualdade é tarefa fundamental à qualquer
projeto democrático, já que em última análise a democracia significa a igualdade
no exercício dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais. A
busca democrática requer fundamentalmente o exercício em igualdade de
condições dos direitos humanos elementares.
Se a democracia confunde-se com a igualdade, a implementação do direito
à igualdade, por sua vez, impõe tanto o desafio de eliminar toda e qualquer
forma de discriminação como o desafio de promover a igualdade.
Para a implementação do direito à igualdade, é decisivo que se intensifiquem
e aprimorem ações em prol do alcance dessas duas metas que, por serem
indissociáveis, hão de ser desenvolvidas de forma conjugada. Há, assim,
que se combinar estratégias repressivas e promocionais que propiciem a imCadernos
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plementação do direito à igualdade. Reitere-se que a Convenção sobre a Eliminação
de Todas as Formas de Discriminação Racial, ratificada hoje por mais
de 167 Estados (dentre eles o Brasil), aponta para a dupla vertente: a repressiva
punitiva e a promocional. Vale dizer, os Estados-partes assumem não apenas
o dever de adotar medidas que proíbam a discriminação racial, mas também
o dever de promover a igualdade mediante a implementação de medidas especiais
e temporárias que acelerem o processo de construção da igualdade racial.
Considerando as especificidades do Brasil, que é o segundo país do
mundo com o maior contingente populacional afro-descendente (45% da
população brasileira, perdendo apenas para a Nigéria), tendo sido, contudo, o
último país do mundo ocidental a abolir a escravidão, faz-se emergencial a
adoção de medidas eficazes para romper com o legado de exclusão étnicoracial,
que compromete não só a plena vigência dos direitos humanos, mas
também a própria democracia no país – sob pena de termos democracia sem
cidadania.
Se no início deste texto acentuava-se que os direitos humanos não são
um dado, mas um construído, enfatiza-se agora que a violação desses direitos
também o é. Ou seja, as violações, as exclusões, as discriminações, as intolerâncias,
os racismos, as injustiças raciais são um construído histórico a ser urgentemente
desconstruído, sendo emergencial a adoção de medidas eficazes
para romper com o legado de exclusão étnico-racial. Há que se enfrentar essas
amarras, mutiladoras do protagonismo, da cidadania e da dignidade da
população afro-descendente.
Destacam-se, nesse sentido, as palavras de Abdias do Nascimento, ao
apontar a necessidade da
...inclusão do povo afro-brasileiro, um povo que luta duramente há cinco séculos
no país, desde os seus primórdios, em favor dos direitos humanos. É o
povo cujos direitos humanos foram mais brutalmente agredidos ao longo da
história do país: o povo que durante séculos não mereceu nem o reconhecimento
de sua própria condição humana.
A implementação do direito à igualdade racial há de ser um imperativo
ético-político-social, capaz de enfrentar o legado discriminatório que tem negado
à metade da população brasileira o pleno exercício de seus direitos e de
liberdades fundamentais.
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