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terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

INTERPRETAÇÃO E DIREITO NATURAL

Análise do Tratado de Direito Natural de Tomás Antonio Gonzaga
KEILA GRINBERG(1)
Resumo
Em fins do século XVIII, ao formar-se bacharel em Direito em Coimbra, Tomás Antonio Gonzaga escreveu o Tratado de Direito Natural, com a pretensão de escrever o primeiro livro em português sobre as disposições então recentes do direito natural, conjugando-as aos princípios teológicos cristãos de ordenação da sociedade. Baseando-se em suas formulações originais sobre o conceito de direito natural, o objetivo deste artigo é discutir as concepções de Gonzaga, comparando-as com as de Grotius e Pufendorf, considerados os fundadores da "moderna escola de direito natural", com as de Heineccius, aquele que filtrou as idéias destes teóricos com um viés teológico, e as de Antonio Ribeiro dos Santos, seu contemporâneo em Portugal. Ao final, são feitas algumas considerações sobre as concepções de direito natural observadas a partir do governo de Pombal, relacionando-as às possibilidades existentes de interpretação, por parte dos magistrados, da legislação então em vigor.
PALAVRAS CHAVE:
Introdução
Quando o Tratado de Direito Natural, de Tomás Antonio Gonzaga, caiu-me nas mãos, fui acometida de uma dupla esperança: primeiro, a de que estivesse diante de um dos livros lidos por magistrados formados em Coimbra em fins do século XVIII; em segundo, a de que pudesse, através desta leitura, obter um claro panorama acerca dos princípios de direito natural vigentes neste período em Portugal.
O interesse pelos magistrados e pelo direito natural justifica-se na medida que venho desenvolvendo um estudo acerca da prática destes magistrados na primeira metade do século XIX, na Corte de Apelação do Rio de Janeiro. Partindo do pressuposto de que as posições por eles adotadas e a argumentação jurídica por eles desenvolvida pode ser relacionada às idéias e aos livros com que tiveram contato no tempo de sua formação, em Coimbra(2), considerei pertinente buscar obras contemporâneas a este tempo que versassem sobre correntes jurídicas então adotadas.
À primeira vista, este era o caso do Tratado de Direito Natural. Certamente havia sido escrito no último quarto do século XVIII, por um bacharel egresso da universidade em questão. Mas minhas esperanças foram em vão. O Tratado permaneceu inédito até a década de 40 deste século(3), não podendo, portanto, ter sido lido por aqueles magistrados.
À verificação do limite das questões iniciais, restaram-me duas possibilidades: paralisar o trabalho ou propor novas questões. Resolvi seguir esta opção, baseando a formulação em pressupostos distintos: já que seria impossível relacionar o Tratado à prática jurídica luso-brasileira de então, quem sabe se a obra de Tomás Antonio Gonzaga não poderia justamente indicar a existência de uma ampla gama de interpretações sobre o assunto?
Apresentação da obra
O Tratado de Direito Natural foi escrito como tese a um concurso para professor da Faculdade de Leis de Coimbra, provavelmente na cadeira de Direito Natural. Não se sabe exatamente o ano em que foi escrito. Antonio Teixeira supõe que o texto seja datado de 1772, pois Tomás Antonio Gonzaga formou-se em 1768 e a cadeira de Direito Natural só foi instituída naquele ano(4).
É pela dedicatória que se pode circunscrever estes dados com mais base: o livro é oferecido ao "Marquês de Pombal, do Conselho de Sua Majestade Fidelíssima e seu Ministro de Estado, (...)"(5). Ele foi escrito, portanto, entre 1769, ano que Sebastião José de Carvalho e Melo recebeu o referido título, e 1777, data da 'Viradeira', fim do governo do dito Marquês. Aqui, o que menos importa é o ano exato em que a obra foi escrita. O mais importante é situar a época, a pombalina, e enfatizar o fato de Gonzaga tê-la dedicado ao Ministro de Estado, responsável pelas reformas fundamentais por que passou Portugal na segunda metade do século XVIII.
De fato, vários autores ressaltam a importância, para o acesso ao cargo, de o pretendente ajustar-se as opções políticas então em vigor. Lapa, não sem certa ironia, faz referência a esta questão:
O jovem opositor fazia nele a política do poderoso Ministro, punha o poder real acima do eclesiástico, defendia o cesarismo, a tirania ilustrada. Dá-se porém a 'Viradeira', em 1777. Gonzaga celebrou então em verso o advento de D. Maria I, renunciou aos seus projetos de lente coimbrão e fez o que todos faziam em seu lugar: habilitou-se para a carreira da magistratura. Em 1779 devia estar já em Beja servindo como juiz-de-fora.(6)
Será que Tomás Antonio Gonzaga acreditava nas idéias que expressava no texto, ou apenas as utilizava como recurso para consecução do cargo? A pergunta não é pertinente. Como nada escreveu sobre isto depois, é impossível comparar suas idéias e construir uma hipótese - ainda que vaga - sobre sua sinceridade. O fato é que o autor não inventou o tema nem os conceitos utilizados. Ao escrever um tratado de direito natural, ele pretendia seguir idéias em voga na Europa inteira, em Portugal em particular, que fundamentavam práticas políticas. Para comparar suas idéias com estas, passemos ao conteúdo da obra.
O objetivo principal de Tomás Antonio Gonzaga é escrever o primeiro livro em português sobre as disposições então recentes do direito natural. Mas ele não pretendeu apenas fazer uma compilação das doutrinas da época; quis corrigi-las, na parte que julgava terem afastado-se dos princípios religiosos católicos. É partindo de um princípio teológico (daí a argumentação começar com o parágrafo "Da existência de Deus") que ele começa a construir o seu próprio conceito de direito natural, dialogando com Grotius, Pufendorf, Thomasius, Heineccius, entre outros formuladores e comentadores da chamada moderna teoria do direito natural.
Segundo Gonzaga, Deus criou o homem para dotá-lo de suas perfeições e para receber dele o culto devido. Assim, deu-lhe inteligência, para que ele pudesse viver em felicidade e cumprir o fim ao qual estava destinado. A razão, porém, não bastava (talvez fosse o que menos bastasse) para que o homem alcançasse esta vida; o fundamental eram as leis infundidas por Deus no coração do homem, às quais ele teria liberdade para seguir ou não. O recurso para conhecê-las era o amor, não a razão. A estas leis, Gonzaga chamou de Direito Natural.
Mas havia um problema neste princípio: as leis naturais não tinham como intimidar o homem com castigos reais: era apenas no plano da moral que ele podia sofrer alguma pressão para seguí-las. Por isso, para que não existisse a possibilidade de os homens viverem apenas seguindo "seus apetites torpes e suas depravadas paixões", Deus teria aprovado a criação das sociedades humanas. Daí que, ainda que todos fossem por natureza iguais, esta mesma natureza teria obrigado Deus a infundir diferenças entre os homens: uns seriam governantes, outros governados. Os governantes teriam o direito e o papel de fazer, desta vez através de castigos efetivos, cumprir os preceitos estipulados por Deus. Às leis derivadas deste direito, Gonzaga chamou de Direito Civil.
O direito natural, nestes termos, não podia mais ser interpretado de acordo com um anterior estado de liberdade; ele devia ser cumprido no presente estágio da sujeição civil. Isto não significava que o direito civil pudesse, em qualquer circunstância, ser superior ao natural; o direito natural é que, dadas as características da humanidade, acabou circunscrito à esfera de atuação do civil.
Estes princípios compõem a base da argumentação do Tratado de Direito Natural. A partir deles, Gonzaga começa a expor suas idéias acerca da hierarquia social, do fundamento e divisões do poder na sociedade, da importância da lei e do direito como fatores de organização social. Por outro lado, mas ainda de acordo com estes pressupostos, ele envereda por discussões sobre o caráter das ações humanas, o livre-arbítrio, a consciência. O direito natural, e portanto Deus, é o que organiza as relações sociais e fornece um fundamento para as ações humanas. Tanto o governante quanto o povo, dentro de suas atribuições, devem orientar-se por ele. Daí a importância de sua obra, daí a necessidade de discutir com aqueles que divulgam idéias consideradas incorretas. Manter o funcionamento da sociedade baseado em Deus e no poder divino do monarca; este era o propósito, neste livro, do futuro inconfidente Tomás Antonio Gonzaga.
Conceitos
Gonzaga dedica boa parte de sua obra a discorrer sobre as características individuais da natureza humana. Só depois, baseando-se na idéia de um pacto inicial, ele passa a analisar os fundamentos da sociedade civil. Como, para ele, todos os homens são iguais perante a divindade, são as ações, baseadas na faculdade do livre-arbítrio, que permitem que haja diferenças entre as pessoas; umas boas, outras más.
Assim sendo, as regras do direito natural de nada adiantariam se o homem não tivesse a faculdade de escolher se queria obedecê-las. Gonzaga considera que a liberdade dada por Deus para que se possa merecer o prêmio ou o castigo é tão importante quanto o reconhecimento de existência deste. Sem liberdade, não haveria moral, muito menos possibilidade de agir conforme alguma noção de bem.
Para poder exercer esta faculdade, o homem foi dotado de consciência, ou o raciocínio acerca da moralidade das ações. É ela quem dirige as ações voluntárias. Gonzaga considera que as ações movidas pela consciência podem ser boas, se conformes à lei natural, ou más, se contrárias a ela. Como são feitas com "deliberação da alma", são morais, livres, e podem ser julgadas. Apesar de nem todas as ações más poderem ser imputadas a seu autor, porque ele pode ter agido sem conhecer as possíveis consequências de seu ato, a ignorância é considerada uma "inimiga do entendimento": é obrigação do homem vencê-la, para que possa obrar bem. Assim como esta, muitas são as obrigações do homem: elas provém da conveniência ou do medo, mas também fazem com que o homem acabe guiando-se pela moral.
Afinal de contas, o homem age moralmente de acordo com sua consciência ou por medo? Este ponto parece controverso, já que Gonzaga crê tanto no medo e na fragilidade como fatores de união das sociedades quanto em um natural apetite para a sociabilidade. Assim, ele congrega obrigação e vontade quando passa a tratar de indivíduos vivendo em conjunto, ou de temas como sociedade civil, pacto social e poder: a sociedade foi formada por um pacto definitivo e insolúvel, a partir do qual as resoluções devem ser obedecidas, (a obrigação de obedecer a lei vem da superioridade de quem manda, não do consentimento do súdito); ao mesmo tempo, é a congregação de cidadãos que decide, através de decretos, a constituição do governo e a eleição das pessoas que exercerão o poder.
Adiante, este autor volta a ressaltar que a sociedade civil é necessária para que os homens gozem de uma vida segura, tranqüila e feliz. Neste ponto, Gonzaga volta a deixar bem claro que os homens em estado de natureza seriam todos iguais; mas como, neste caso, a convivência seria impossível, pois estariam todos sujeitos ao domínio das paixões, Deus teria instituído a sociedade civil. Daí vem a inferência de que todo poder que um homem exerce sobre outro provém apenas de Deus; é ele quem legitima o poder e o mandato do governante, já que o povo, embora tenha o direito de escolher seu soberano (de preferência adotando a monarquia como forma de governo), não tem o poder de destituí-lo, mesmo se considerar que ele passou a ser um tirano.
Assim, a finalidade da sociedade civil é obrigar todos os homens a respeitarem a lei natural, mas também possibilitar que vivam de acordo com o seu desejo: como eles desejam tudo o que contribui para sua felicidade, e como não se pode viver feliz fora da sociedade, esta é uma necessidade humana. Neste ponto, vontade de Deus e necessidade dos homens confundem-se:
Posto que não seja mandada por Direito Natural (a lei civil), de forma que digamos que o quebram os que vivem sem ela à maneira dos brutos, é contudo sumamente útil e necessária, para se guardarem não só os preceitos naturais que dizem respeito à paz e felicidade temporal, mas também para se cumprirem as obrigações que temos para com Deus, porque nem a religião pode estar sem uma sociedade cristã, nem esta sociedade cristã sem uma concórdia entre os homens, nem esta concórdia se poderá conseguir sem ser por meio de uma sociedade civil.(7)
A última parte do Tratado tem como tema a preocupação com a colocação em prática dos fundamentos antes expostos. Aqui, Gonzaga desenvolve os conceitos de direito e justiça, e parte para uma teorização acerca do sentido pragmático que devam ter a lei, o costume e o privilégio na interpretação das normas; todos, em conjunto, devem ser orientados para o respeito à vontade do legislador, tendo como fim o bem dos povos.
Gonzaga considera que o termo direito tem vários significados: "faculdade natural" para agir ou não, autoridade para agir (ou obrigar outros a fazê-lo), sentença do juiz, etc. No entanto, o que é realmente importante é sua constituição como uma coleção de leis homogêneas, provindas em primeiro lugar do direito natural, em seguida do poder civil. A partir daí, ele passa a classificar os dois campos do direito de acordo com suas atribuições, ressaltando mais uma vez que a diferença entre o direito natural e o civil é que este é arbitrário, e o primeiro não; desta forma, as leis naturais estão sempre de acordo com a justiça, enquanto que nem sempre as civis estarão de acordo com ela, já que podem ser feitas por legisladores tiranos.
A justiça seria, então, a "virtude que dá a cada um o que é seu". Esta virtude seria composta por qualidades como "viver honesto, não ofender a outro"(8). O homem que não ofende a outro e dá a cada um o que lhe pertence é aquele que, por exemplo, se obriga a ressarcir um dano causado a alguém. O que vive honesto é aquele que ajuda um pobre; ele faz algo que ninguém o obriga, mas que considera ser justo.
A definição que Gonzaga dá à lei está adequada à realização destas noções de direito e justiça; é uma regra dos atos morais, prescrita pelo superior aos súditos. Dividida em preceptiva (manda ou proíbe alguma ação) e permissiva (concede alguma ação); divina ou civil, ela tem como requisitos básicos ser honesta, possível, perpétua (só quem concedeu algo pode retirar), escrita pelo governante, promulgada com palavras claras e próprias, e concebida com o objetivo de regular as ações do futuro. Neste esquema, Gonzaga considera que o costume (a frequência de atos externos feitos pela maioria da sociedade) não tem força de lei, mas pode ser considerado quando for útil à sociedade e aprovado pelo soberano. No caso, um costume com sanção do Estado pode revogar uma lei ou até instituir uma nova.
Apesar de ter como princípio o fato de Deus ter criado a todos iguais, Gonzaga considera correto que o monarca conceda privilégios, ou seja, estabeleça direitos especiais, para alguns, contra ou além da lei. Ele justifica isto definindo o privilégio como uma lei privada que, como as outras, só pode ser revogada pelo soberano, ainda que todas as leis gerais percam a validade. O privilégio é sempre concedido a uma categoria de pessoas, que pode ser definido de acordo com seu lugar na sociedade (membros da nobreza ou do clero, por exemplo) ou por uma circunstância ocasional (habitantes de uma região).
A princípio, admitir sociedades com privilegiados contradiz a premissa da igualdade. Mas se Gonzaga justifica a possível desigualdade na necessidade de instituir governantes e governados, isto não poderia ser estendido à compreensão do privilégio como uma necessidade terrena de instituir diferenças?(9)
O funcionamento perfeito do direito e da justiça esbarra em um problema: quem aplica as leis não é o soberano, mas os juízes; da mesma forma, são estes e os advogados que a interpretam, conferindo a elas significados muitas vezes não desejados pelo legislador. Gonzaga dá bastante atenção a esta questão. Para circunscrever a esfera de atuação dos magistrados, ele os define como pessoas públicas, representantes do rei, que por isso lhe devem obediência. Desta forma, os magistrados sempre devem usar a lei de acordo com a vontade do soberano. Uma boa interpretação, portanto, deve ser feita de acordo com seu sentido original, com o objetivo de sua utilização, com o costume adotado pelo povo (para melhor aceitação da decisão judicial). Mas se este uso propiciar situações absurdas, inúteis ou injustas, ele não deve ser feito.
Nestes casos, a interpretação pode ser também usual, se baseada no costume, ou virtual, quando é feita por sábios mas não segue a lei. Além disso, ela pode ser extensiva, quando atribue à lei um sentido mais amplo do que o original, restritiva, quando este sentido é mais restrito, ou declaratória, quando tem por objetivo explicitar as propriedades e a inteligência da lei. Apesar de estes não serem usos ideais da lei, Gonzaga admite que eles devem ser adotados sempre que não houver leis que forneçam soluções para as ocorrências.
As primeiras considerações acerca das possibilidades de análise do Tratado de Direito Natural foram feitas após a leitura e esta esquematização. Elas certamente foram influenciadas pela leitura do livro Tomás Antonio Gonzaga e o direito natural, de Lourival Gomes Machado. Este autor analisa o Tratado como um "índice do caráter e da efetividade dos valores culturais dominantes ao tempo que foi escrito"(10), e como uma oportunidade de estudar a relatividade dos dogmas pombalinos, o grau de aceitação destes e a correspondência real entre seus princípios e aqueles consagrados pelos grupos sociais. Chamando a atenção para a possibilidade de existência de valores diversos e sistemas antagônicos em uma mesma obra, Machado questiona-se sobre as possíveis relações entre o esquema de Gonzaga, a doutrina européia de direito natural do século XVIII e o contexto político-jurídico português da segunda metade deste século.
Foi a partir daí que foram formuladas as seguintes perguntas: as noções de direito natural de Tomás Antonio Gonzaga estão de acordo com a visão do Estado português sobre o assunto? Como este autor interpreta as formulações de outros autores, notadamente os formuladores do chamado direito natural moderno? Estas interpretações são compartilhadas por seus contemporâneos, ou seja, fazem parte de um senso comum ou de um programa universitário, ou são específicas do autor?
Para responder a elas, foi necessário, como Machado, confrontar as idéias de Tomás Antonio Gonzaga com a doutrina do direito natural e com as especificidades políticas e jurídicas de Portugal de então.
Citações e Contextos
Para conceituar as idéias expressas no Tratado de Direito Natural, Tomás Antonio Gonzaga fez uso de estudos de vários pensadores e estudiosos do direito natural; geralmente, seus conceitos são citações de algum deles, escolhidos após exposição acerca dos possíveis significados do termo e de explanação sobre a conveniência daquela adoção. Convém discorrer um pouco sobre os representantes da chamada escola moderna do direito natural para efetuar as relações entre a obra de Gonzaga e as teorias formuladas por estes.
Em primeiro lugar, é importante dizer que não existe propriamente uma escola do direito natural; o movimento que é assim chamado inicia-se nos Países Baixos e na Alemanha, no século XVII, e tem como fundadores Hugo Grotius e Samuel Pufendorf. Mais propriamente denominado concepção moderna do direito natural(11), ele caracteriza-se por referir-se à natureza do homem e da sociedade como bases para a noção de justiça. Rejeitando a subordinação a princípios externos à vida social, como o direito divino, os teóricos desta corrente buscavam princípios evidentes e axiomáticos para o estudo e crítica da natureza humana. Grotius e Pufendorf, portanto, são considerados inauguradores de uma nova forma de pensar o direito natural por duas razões: buscaram fundamentar a natureza humana e os direitos daí decorrentes em bases seculares, e estavam preocupados, em especial o segundo, em dar um impulso à reflexão sistemática sobre o direito. A partir daí, popularizado nos trabalhos de seus seguidores e utilizado nas formulações sobre os direitos do homem no século XVIII, a concepção moderna de direito natural institucionalizou-se como disciplina e transformou-se em cátedra em várias universidades da Europa.
Antes de Hugo Grotius(12), o direito natural podia ser dividido genericamente em duas correntes: uma considerava que a ordem natural era gravada por Deus na natureza e dela fluía por via da razão natural; a outra acreditava na ordem natural como aquilo que fôra por Deus ordenado e o que fôra organizado pelo homem a partir dali. Ambos partem da idéia de que os direitos inalienáveis do homem provém de essência religiosa. Grotius é considerado o ponto inicial da laicização; cristão, mas também imbuído de cultura humanista, ele considera a própria lei natural como um fundamento jurídico superior, e por isso universal.
Neste ponto, sua questão é: o fundamento jurídico universal modifica-se ao longo do tempo ou não? Grotius volta-se para o estudo da natureza humana e chega à conclusão de que este fundamento jurídico é uma forma histórica, e que a fonte da lei é a sociedade. Assim, o conceito de justiça deve ser definido de acordo com a capacidade humana de exercício da sociabilidade. Daí vem a afirmação de que "o direito natural existiria ainda que Deus não existisse"(13).
Ao estabelecer esta noção, Grotius reporta-se não só à religião, mas também à política. É contra o Estado-Leviatã de Hobbes que ele enfatiza a necessidade de definição da esfera do jurídico em face do Estado. Apenas independente da religião e do poder é que o direito poderia permanecer fiel à formulação ideal de justiça que o sustenta.
Samuel de Pufendorf(14) é considerado continuador de Grotius, mas também autor de obra original sobre o direito natural. Embora seus escritos não sejam limitados aos tratados de direito, é sobretudo neste campo que ele se torna conhecido. Assim como Grotius, ele considera a possibilidade da relação entre o direito e a aritmética: os princípios de direito natural são de evidência perfeita, como axiomas da matemática; por isso, é fundamental estabelecer princípios para a dedução do direito natural. Ao afirmar que estes princípios podem ser retirados tanto da experiência empírica quanto da tradição consagrada, Pufendorf contribui para aprofundar o movimento de secularização do direito.
O objetivo principal de Pufendorf era descobrir os fundamentos do direito. Para ele, no universo múltiplo do direito, havia um princípio único, a lei natural de Deus. Porque divina, esta lei seria imutável, enquanto as outras leis, advindas das organizações jurídicas humanas, variariam de acordo com as condições espaço-temporais.
Para Pufendorf, a lei natural que se impõe ao gênero humano é uma lei de obrigação, que só pode ser imputada a seres morais, dotados de razão. Assim, só o homem pode ser sujeito de direito; o imperativo da lei natural é, portanto, que a obrigação seja mantida pelos homens. Esta obrigação pode ser traduzida na observância do princípio de sociabilidade (da forma conceituada por Grotius) como máxima essencial do mundo humano. Ou seja: todas os sistemas humanos de direito e as obrigações daí decorrentes devem estar assentes na idéia de que o homem é um ser social.
Da obrigação da sociabilidade, Pufendorf distingue duas ordens de princípios, os absolutos e os hipotéticos: os primeiros obrigam a todos os homens enquanto membros do gênero humano, independente de suas vontades: são originários de Deus; os segundos dependem das determinações humanas, instituídos, por exemplo, pelos governos de cada nação. Embora dependentes da vontade do homem, estas obrigações são tão importantes quanto as outras; elas serviriam para formar leis que disciplinem a sociedade.
Heineccius(15) é conhecido no campo do direito natural por ser organizador e também refutador de certos aspectos da obra de Grotius. Ele considera o direito natural como
o conjunto das leis que Deus promulgou ao gênero humano por meio da reta razão. Se se quer considerá-lo como ciência, a jurisprudência natural será a maneira prática de conhecer a vontade do legislador supremo, tal como se expressa pela reta razão.(16)
Este autor acredita, portanto, que a lei é expressão da vontade de Deus, e neste ponto afasta-se das premissas básicas de Grotius e Pufendorf. A lei é uma necessidade social, ditada pela consciência humana, mas esta consciência, a razão, é determinada pelos desígnios divinos. Ela não faz mais do que permitir o conhecimento das leis de Deus.
A grande questão de Heineccius a partir daí, e nisto ele pode ser situado na corrente inaugurada pelos dois teóricos, é a de harmonizar esta norma suprema com a liberdade do homem, a ordem natural com a conduta individual. Neste sentido, considera importante delimitar o poder temporal e o poder eclesiástico, fundando também a sociedade na vontade divina. Aliás, seria justamente a sociedade perfeita o que provaria a existência de Deus.
Apesar de citar outros autores, Tomás Antonio Gonzaga recorre basicamente a estes três para reforçar suas idéias. Ao usá-los, mostra que está em dia com os estudos contemporâneos sobre o direito natural, escolhendo as mais recentes e conhecidas fontes dentre as permitidas pela censura oficial. No entanto, nem todas as suas conclusões foram retiradas da obra destes autores. Vejamos.
Grotius é considerado por Gonzaga a maior influência em seu livro. Ele concorda com o primeiro nas definições das estruturas de direito e justiça, como por exemplo as classificações do direito positivo e as divisões da justiça; o conceito de lei como "uma regra dos atos morais que obriga ao que é justo"(17) também é baseado neste autor. Suas discordâncias situam-se em outro plano.
Tomás Antonio Gonzaga dá bastante importância à argumentação que tenta refutar a afirmação de Grotius de que existiria direito natural ainda que Deus não existisse. Para ele, isto suporia a existência de outro ente - formulador do direito- que não Deus. Na verdade, o que Gonzaga não admite conceber é a existência de um direito natural secularizado. Basta isso para que cheguemos à conclusão de que o pensamento dos dois, em princípio, são opostos. Grotius considera a sociabilidade o ponto sensível de sua teoria; Gonzaga parte da evidência divina, não preocupando-se em traçar o elo natural que determina a condição humana, mas em ressaltar os traços morais impressos por Deus no homem. Sua sociabilidade aparece então como consequência da vontade divina; tem origem, natureza e finalidade extra-humanas. Além disso, no que se refere à concepção do Estado, Gonzaga discorda de Grotius quando este defende que o rei deve prestar contas ao povo; para ele, o povo apenas constitui o governante, e esta constituição é permanente. É quanto aos próprios fundamentos da teoria do direito natural, portanto, que Gonzaga discorda de Grotius. Quanto a Pufendorf, Gonzaga concorda na definição de sociedade civil como
pessoa moral composta, cuja vontade implícita e unida por pactos de muitos se tem pela vontade de todos, para que possa usar das forças de cada um e das suas faculdades para o fim de uma paz e segurança comum(18),
e também parte do medo como causa eficiente para formação das cidades. Sua principal discordância diz respeito à divisão dos princípios do direito natural em absolutos e hipotéticos. Para Gonzaga, não existem princípios hipotéticos. Apesar de não criticar Pufendorf da mesma forma que faz com Grotius, Gonzaga evidentemente não compartilha das idéias seculares deste autor.
Na verdade, o autor mais citado do texto é Heineccius. Gonzaga compartilha suas idéias sobre as características do homem e de Deus, o conceito de liberdade ("é uma faculdade para fazermos tudo o que nos for conveniente e não para fazermos o que nos for nocivo"(19) ), de livre-arbítrio, de ação, de obrigação e de interpretação; concorda também com a consideração do amor como o princípio único do direito natural, da paz, sossego, justiça e defesa como finalidades da sociedade civil, e da não-obrigatoriedade de prestação de contas do rei ao povo. Gonzaga, assim, em nada discorda das proposições de Heineccius. Muito pelo contrário: ressalta as críticas deste autor a Grotius, principalmente na afirmação de que a lei depende da existência do legislador, que este só pode ser Deus, e que sem Deus não há direito natural.
A opção de Tomás Antonio Gonzaga, portanto, é pela versão teológica do direito natural moderno. Suas citações mostram como ele efetivamente não adota as soluções de Grotius e Pufendorf ao problema fundamental do direito natural, e filia-se expressamente a Heineccius.
Para Lourival Gomes Machado, a preferência por Heineccius não significa que este fosse tão diferente dos outros; ao contrário, haveria mais pontos em comum do que discrepâncias. Gonzaga teria usado Heineccius apenas como pretexto para corrigir a maneira de pensar de Grotius. Acontece que Heineccius é considerado um autor menor na tradição jusnaturalista; é aí que Machado é duro com Gonzaga: ele acha que este cita Grotius e Pufendorf apenas naquilo que é de seu interesse, como argumento de autoridade ou para dar uma capa moderna e sedutora a um estudo que estaria melhor classificado como tomista.
A conclusão, a que se chega é que, se o direito natural assume em toda a Europa nos séculos XVII e XVIII uma função renovadora e revolucionária, em Portugal de fins do século XVIII ele é utilizado por Tomás Antonio Gonzaga como elemento de conservação do poder real.
Assumindo, assim, as proposições gerais de Machado (menos na parte do interesse maquiavélico de Gonzaga nas citações de Pufendorf e Grotius; é melhor supor que ele realmente considera importante o diálogo com estes autores, ainda que seja para refutar seus pontos-chave; afinal, se estes eram os autores do direito natural mais lidos do momento e se Gonzaga achava que eles divulgavam idéias erradas sobre princípios considerados tão fundamentais, por que não tentar rebatê-las?), é fundamental uma ida ao contexto político-jurídico no qual Gonzaga escreve sua obra. Sem isso, fica impossível circunscrever mais sua doutrina. A contextualização deve, portanto, abarcar tanto a forma como as idéias modernas sobre o direito natural aportaram em Portugal quanto as transformações jurídicas ocorridas neste país na segunda metade do século XVIII.
A introdução do direito natural e as reformas jurídicas realizadas em Portugal neste período têm uma questão comum: a consideração sobre a necessidade de se reformar as fontes de direito em uso no país, para que fossem adotadas fontes verdadeiramente nacionais, e não romano-canônicas, como vinha sido feito até então. Esta problemática pode ser remontada ao século XV, quando foi feita a primeira compilação, as Ordenações Afonsinas, para sistematizar fontes nacionais e estabelecer o campo de aplicação do direito romano-canônico. Este ponto era de particular importância porque, até então, era o rei que, como árbitro, assumia o papel de criar o direito, decidindo entre o costume e as tradições canônica e romana.
Nas Ordenações Afonsinas foi decidida a adoção do Código de Justiniano, na interpretação dada por Acúrsio. O problema desta resolução foi que ela mal podia ser colocada em prática em Lisboa (quanto mais no resto do Reino!), já que só havia uma cópia do texto. Isto só foi solucionado na compilação seguinte, as Ordenações Manuelinas, contemporânea ao advento da imprensa, feita com o objetivo de assegurar a aplicação das leis a todo o país. Esta e as Ordenações Filipinas, do início do século XVII, em quase nada mudaram a primeira sistematização, incorporando apenas as leis posteriores.
A primeira compilação, portanto, ainda era a referência básica para juristas e juízes dos séculos seguintes no que se refere à adoção das fontes de direito e ao estabelecimento de direito subsidiário: em primeiro lugar, deveria ser usado o direito local; em segundo, os direitos romano e canônico; depois, Acúrsio e Bártolo; por último, o rei decidiria com o recurso ao costume. Na prática, porém, o que acontecia era uma inversão dos critérios: a primazia era do direito romano, e o nacional acabava sendo o subsidiário.
No século XVIII, nada disso estava de acordo com as pretensões políticas do Estado português, nem com as discussões jurídicas travadas no momento em toda a Europa. Afinal, a questão do reinado de D. José, tendo à frente o Marquês de Pombal, era fortalecer o Estado nacional, através do poder absoluto, da centralização administrativa, da preocupação com a educação laica, e da expulsão dos jesuítas, tidos como "inimigos da independência nacional, contra a coroa, contra a fé e contra a verdadeira cultura"(20).
A disputa com os jesuítas englobava várias frentes, entre elas o estabelecimento da censura e fiscalização oficiais de publicações nacionais e estrangeiras, as reformas educacionais, as jurídicas, etc. A importância destas está na substituição do direito romano pelo direito nacional: a utilização dos Index romanos passaram a ser vistos como um atentado à inteligência portuguesa. Como base de sustentação para a legislação nacional, o direito natural.
O jusnaturalismo era nesta retórica fundamental porque justificava a ligação da cultura e da história portuguesas com a cultura e história gerais da Europa, interrompida apenas pelo interregno jesuítico; além disso, o direito natural era utilizado pelo pombalismo como uma oportunidade de se defender a ilustração, o princípio monárquico e os problemas filosófico-jurídicos propriamente ditos.
O interessante é que as concepções de direito natural apresentadas na "Dedução Cronológica e Analítica", obra coletiva tomada como representação do pensamento oficial do pombalismo contra os jesuítas, são extremamente seletivas: não se fala, por exemplo, em origem popular do poder dos reis nem em princípios secularizados. O resultado disto é a tentativa de articulação entre a ortodoxia religiosa e os resultados do desenvolvimento científico dos últimos séculos. O direito natural, no caso, aparece como fundamento da existência divina e do esforço de Deus na organização da comunidade dos homens.
A "Dedução Cronológica e Analítica" e também o "Compêndio Histórico da Universidade de Coimbra"(21) deixavam clara a necessidade, para o governo, de reformar o ensino jurídico e o quadro das fontes de direito. Até meados do século XVIII, o ensino universitário era dominado pelo método bartolista, no qual o direito romano era o modelo e o seu ensino tornava quase exclusiva a adoção de seus preceitos. Além disso, havia, por um lado, excesso de legislação avulsa, o que aumentava as possibilidades de interpretações díspares, e por outro uma carência de respostas legais a situações concretas.
Era necessária, portanto, uma reforma, não só do ensino, mas de toda a estrutura jurídica. Agora, era preciso limitar as fontes utilizadas por juízes, na tentativa de eliminar a doutrina e limitar a interpretação, e condicionar a vigência do direito romano à sua conformidade com a boa razão, tornada lei em 17 de agosto de 1769(22). Por trás das reformas, dois problemas: como eliminar as controvérsias na interpretação das fontes de direito? Como determinar os princípios do direito natural com os quais o direito romano deveria se conformar?
A primeira solução dada para a questão da interpretação foi a eliminação completa da doutrina; o juiz não poderia interpretar, apenas ler a lei em seu sentido literal; se por acaso a interpretação literal fosse contra a eqüidade, o rei determinaria o uso. Esta utilização da lei, porém, nunca deveria criar uma jurisprudência: a cada caso semelhante, novo apelo ao soberano deveria ser feito. Esta tentativa não deu certo, já que era inviável recorrer ao governante a cada dúvida; a limitação maior, na prática, acabou sendo a da confecção de leis. Agora, apenas a Casa de Suplicação de Lisboa - e não mais os Tribunais da Relação do Porto, de Goa, da Bahia e do Rio de Janeiro - poderia proferir Assentos passíveis de utilização por outras cortes. A questão da interpretação acabou reduzida ao esforço de uniformização das sentenças.
Sobre o direito romano, era preciso, antes de tudo, saber os trechos que teriam sido ditados por Deus - parte do direito natural - e aqueles impostos por condições particulares e históricas da vida dos romanos. Estes deveriam ser extirpadas, mas os primeiros poderiam ser mantidos. Ainda restava o problema da utilização destas regras de direito. O critério foi o uso moderno das leis romanas em outros países, notadamente, na Alemanha. O Usus Modernus Pandectarum(23), ou a tendência que defende a aplicação do direito romano apenas naquilo que está adaptado à boa razão, restringiu o direito romano ao caráter de direito subsidiário.
Estas duas questões foram objeto de intensa polêmica na época. A reforma no ensino, porém, acabou decidindo pela criação da cadeira de direito natural, justificada pela necessidade de se fornecer aos estudantes uma
idéia bem clara da natureza do homem, do seu estado moral, da sua liberdade, da imputação das suas ações, do bem e do mal, da suma e verdadeira felicidade para que Deus o criou.(24)
Os novos estatutos da universidade também estabeleciam o modo como o curso deveria ser organizado: história das leis e jurisprudência natural; interpretação do direito natural por estóicos, romanos, padres, escolásticos, Grotius e Pufendorf; direito público universal, direito das gentes, noções gerais de ética, e recomendavam a confecção de um compêndio para ser usado como manual dos estudantes. Como este manual só foi feito em 1843, o jeito foi adotar livros estrangeiros com o devido crivo da censura oficial. A obra Elementos de Filosofia Moral, de Heineccius, não por acaso traduzida para o português em 1785, foi, muito provavelmente, a mais manuseada em Coimbra nesta época.
Podemos chegar ao final do século XVIII com uma idéia mais clara acerca do contexto que influenciou as tomadas de posição de Tomás Antônio Gonzaga. Se isto não explica suas íntimas convicções, ao menos ajuda a perceber que ele não está fora de lugar nem de época. Seu conceito de direito natural no que se refere, por exemplo, aos princípios divinos e ao poder dos reis está de acordo com os preceitos firmados nos Estatutos da Universidade, nos quais o direito natural aparece como justificativa do despotismo.
Aqui também podemos explicar a adoção de Heineccius como referência teórica principal da obra. Toda a orientação do direito natural em Portugal se dá via catolicismo, ou ainda, por concepção teológica de natureza. Se Tomás Antonio Gonzaga realmente acredita que esta é a melhor forma de ler as doutrinas do direito natural ou se quer apenas agradar os detentores do poder, não importa. O relevante, no caso, é ressaltar a discrepância entre os primeiros textos da reforma universitária, a "Dedução Cronológica e Analítica" e o "Compêndio Histórico da Universidade de Coimbra", e a corrente de direito natural iniciada por Grotius e Pufendorf.
Estar de acordo, porém, com a proposta pedagógica pombalina não significa que Gonzaga endossasse, em tudo, as concepções impostas por este governo. A subordinação de todo o mundo a uma ordem divina e a definição do amor como fundamento para se conhecer as leis naturais dificilmente seriam pontos defensáveis pelos arautos de um governo que pretendia modernizar o país. Mas, mesmo sendo importante, isto não impedia a adequação de Gonzaga às idéias pombalinas, ainda mais porque o princípio divino em hora alguma é contraposto ao esquema absolutista.
Esta conclusão abre uma brecha para a formulação de outras perguntas: o esquema pedagógico colocado em prática a partir do governo Pombal fez com que houvesse uma homogeneidade de pensamento entre os magistrados? Ou melhor: todos tinham a mesma noção que ele sobre o direito natural, o poder dos reis, a interpretação judicial? Para desenvolver estas questões, é necessário proceder a algumas comparações.
Comparações
Uma primeira possibilidade é comparar o pensamento de Tomás Antonio Gonzaga com o de um contemporâneo seu, Antonio Ribeiro dos Santos(25). Santos formou-se como bacharel no curso de Cânones em 1768, alguns anos antes de Gonzaga. Em 1778, foi convidado, junto com Pascoal José de Melo Freire, para integrar o corpo da Academia das Ciências. Foi a partir dali que ele passou a contribuir para a reforma dos estudos de Coimbra, com a participação na elaboração do texto do Compêndio Histórico. Mais tarde, envolveu-se em polêmica com Melo Freire, encarregado da confecção do Novo Código de Direito Público (a reforma do livro II das Ordenações Filipinas), sobre o conteúdo deste corpo de leis. Através desta discussão, podemos retornar às questões de Gonzaga.
Ribeiro dos Santos concebe a religião natural como corretivo da imperfeição humana; por isso, a ordem natural seria o fundamento para manutenção da ordem social. Ele segue a tradição de Grotius e Pufendorf no que se refere à conveniência de uma lei adequada à natureza do homem. Quanto à fundamentação do poder, se atém a princípios teológicos, interpretando o direito natural moderno à luz de Heineccius. Até o momento, portanto, as convicções de Gonzaga em pouco diferem-se das de Ribeiro dos Santos.
Quanto à polêmica com Melo Freire, Santos estava preocupado com a participação das classes sociais no quadro das Ordens; ou seja, ele pensava nas possibilidades de invocação das Cortes, tentando articular o pombalismo com a crescente expressão política de determinados grupos sociais. Assim, discordava de Melo Freire, que condenava veementemente a convocação das cortes. Além disso, Ribeiro dos Santos chama a atenção para a importância do poder legislativo, não indo contra o direito de soberania de fazer leis, mas apurando a necessidade de modificação de certas regras e condições de acordo com as circunstâncias. Aqui, ele novamente discordava de Melo Freire, que havia defendido no projeto a exclusividade do imperante nestas questões.
Há ainda outros pontos: Ribeiro dos Santos defendia a delimitação do privilégio, a inconveniência de o rei ser legislador e juiz, a necessidade de uma estrutura constitucional, a simplificação da legislação, o fim da utilização do direito romano, etc. Várias destas questões, além de serem contrárias às defendidas por Melo Freire, são também distintas das de Tomás Antonio Gonzaga. Este, por exemplo, define o privilégio como algo atribuído exclusivamente pelo soberano, concedendo-o ou retirando-o da forma como bem entender. Qualquer outra instituição que limitasse o poder executivo também seria criticada por Gonzaga, como a convocação das Cortes.
Ribeiro dos Santos parte, no entanto, dos mesmos fundamentos jusnaturalistas para construir suas visões sobre a política, a sociedade. Mas chega a conclusões diferentes, e nem por isso deixa de ser um funcionário a serviço do governo e da implementação das idéias introduzidas com o governo de Pombal. O exemplo de Melo Freire e Antonio Ribeiro dos Santos, por si só, já seria suficiente para se concluir que nem todos tinham as mesmas idéias sobre o poder dos reis, o papel do poder legislativo, etc. Sendo assim, pode-se admitir a existência de concepções antagônicas convivendo e disputando-se no interior da doutrina oficial.
Exatamente por isso, o papel da interpretação na prática jurídica foi cuidadosamente discutido neste período. Para os arquitetos da reforma pombalina, era fundamental delimitar ao máximo o corpo de leis que servia como base para tomada de decisões, e também estabelecer em que consistia a atividade de interpretação, já que "aquilo que os juristas entendem ser o direito vigente, objeto do seu trabalho construtivo, está longe de coincidir com aquilo que o poder político autoritariamente lhes definira como tal"(26). A solução para este impasse seria mudar o corpo doutrinário dos juristas, adotando o usus modernus pandectarum, e amarrando as resoluções dos juízes à subordinação aos Assentos da Casa de Suplicação.
Ainda no contexto da implementação das reformas jurídicas, este método sofreu suas críticas. Ribeiro dos Santos não concordava com tamanho alcance dos Assentos, nem com a importância dada à Casa da Suplicação na formulação da interpretação ideal da lei. Concordando com Melo Freire neste aspecto, acreditava que a atividade de interpretação era parte da lei, e que portanto só aquele que tinha o poder de determinar a lei - o governante - podia interpretar. Este procedimento, no seu entender, levava a uma maior segurança dos súditos, porque seria impossível prever se a leitura dos magistrados seria conforme à do legislador(27).
A questão básica desta discussão refere-se à possibilidade de prever se a interpretação da lei sempre será feita de acordo com os ideais então fixados. Ou melhor: o objetivo é o de garantir, para o futuro, a manutenção dos pressupostos jurídicos firmados com o pombalismo. Havia discordâncias quanto à maneira de se fazer isto, como vimos. Mas há outro problema que perpassa este: era possível, segundo os textos contemporâneos, unificar completamente a interpretação das leis? Há um trecho dos Estatutos que diz respeito ao assunto:
§4.: Não haverá sistema algum filosófico a que ele (professor) inteiramente subscreve na exploração e demonstração das leis naturais, antes pelo contrário, a filosofia que ele deverá seguir será propriamente a eclética. §5: Não haverá autor que sirva de texto, excepção de Grócio e Pufendorf (...). Sim respeitará o professor a sua autoridade, como dos primeiros mestres desta disciplina, mas nem ela fixará o seu ascenso, nem porá grilhões aos seu discurso. §6: Como cidadão livre do império da razão, procurará o professor a verdade, a ordem, a dedução, o método e a demonstração, onde quer que a achar. §7: O código da humanidade será somente o autêntico dos preceitos que a natureza escreveu nos corações dos homens, será unicamente o que nesta jurisprudência tenha força e autoridade de lei.(28)
A interpolação básica que se poderia propor a este raciocínio é que uma coisa são as aulas dadas pelo professor; outra é a validade das interpretações feitas pelos magistrados. O que quero argumentar, no entanto, é que se a forma como o ensino foi ministrado foi, a princípio, relativamente livre, foi possível que se construíssem diferentes visões acerca do direito natural e até mesmo das possibilidades de interpretação em diferentes casos. O que os professores e seus alunos, futuros magistrados, entenderam por "boa razão" também pode ter variado. Apesar da determinação em circunscrever as posições, o próprio texto dos Estatutos servia como base para elaboração de posições diversas.
Aqui talvez tenhamos chegado à chave para o entendimento de algumas das posições de Tomás Antonio Gonzaga. Podemos chegar à conclusão que, embora defendendo opiniões diversas das oficiais, isto não significa que fosse, neste momento, contrário ao regime; ao contrário, havia espaço, deixado pelos próprios textos pombalinos, para este tipo de posição: a igualdade de posições passa ao largo da formação dos magistrados portugueses da segunda metade do século XVIII.
Conclusão
Um dos pressupostos iniciais da leitura de Tratado de Direito Natural de Tomás Antonio Gonzaga foi a presunção da possibilidade de alcançar o conceito de direito natural estabelecido pelo pombalismo. Ainda no princípio, a esta formulação seguiu-se uma outra: talvez não houvesse um, mas vários conceitos de direito natural possíveis na época.
A constatação desta hipótese no decorrer do texto complicou bastante o trabalho: se antes já se tinha dúvidas quanto a possibilidade de imputar as conclusões sobre as idéias de Gonzaga aos advogados do princípio do século XIX, que dirá agora? A saída foi buscar na própria noção de interpretação o caminho para estender as considerações feitas à prática dos magistrados. Que esta era uma dor de cabeça para os reformadores, já está claro. O teor das discussões e difícil objetivo a alcançar não deixam dúvidas quanto a isto. Além disso, não se pode esquecer que a unificação da interpretação só podia ocorrer quando fosse estabelecido um corpo de leis que anulasse todo o anterior, permanecendo, como era o próposito pombalino, o direito romano apenas como subsidiário.
Mas não foi isto o que aconteceu. Tomás Antonio Gonzaga refere-se à ambivalência de muitas leis em vigor, e a impossibilidade - que persistiu por algum tempo, ainda - de estabelecer quais leis seriam válidas em cada caso. O problema é então maior: tentar uma interpretação sem sombra de certeza quanto ao uso de determinada lei. Gonzaga aventura que é preciso tentar conciliar as leis quando não se pode acessar o soberano:
É bem certo que sendo a vontade do legislador a que faz a lei, há de ser melhor toda a interpretação que for mais conforme à vontade dele. Daí vem que, quando do fim da lei não se pode coligir qual seja a tenção do soberano, devemos recorrer às outras leis antecedentes ou subseqüentes que tratam da mesma matéria, para vermos se dela a coligimos.(29)
Mas, mesmo assim, admite o largo campo de atuação no qual circulam os magistrados, já que acaba recomendando, baseado em Heineccius, que "toda a interpretação se deve fazer mais a favor de quem sente o dano do que a favor do que recebe o lucro"(30). Como saber quem é o favorecido em cada caso? A isto, Gonzaga não responde. Subentende-se que é uma dedução óbvia, ou que isto fica a critério do juiz. Óbvia ela não é: se fosse, processos semelhantes seriam sempre resolvidos da mesma maneira. Ficamos com a segunda opção: a resolução fica a critério do juiz e da competência dos advogados de cada lado em construírem uma argumentação convincente.
As conclusões do texto são, no fundo, enunciados de outros problemas. Eles não serão desenvolvidas no âmbito deste texto. Mas encerrar com perguntas um raciocínio que pressupunha, no início, a chegada a convicções talvez indique algum aprendizado.
Uma primeira questão está relacionada ao próprio contexto de época: mesmo sabendo que há várias conceitos de direito natural em interação, é possível delimitar as múltiplas interpretações construídas pelos magistrados em atuação no período em questão?
Diretamente relacionada com esta, uma outra: quais eram os fundamentos das interpretações destes magistrados? Afinal, apesar de claramente lidarem com o arcabouço conceitual do direito natural, o raciocínio encaminhado até aqui demonstra que esta não pode ser considerada uma chave única para o encaminhamento do problema: era plausível que alguns considerassem o fundamento teológico do direito natural, e outros seguissem bem mais de perto as idéias de Grotius e Pufendorf.
A hipótese, neste momento, não passa de suspeita: a resposta deve estar na própria forma como juízes e advogados leram as leis em vigor na época - o que significa um manancial de legislação que remonta ao século XV - e como estes escreveram seus libelos. O conteúdo propriamente dito da legislação talvez importe menos do que a construção do argumento. Mas isto ainda não passa de suposição.
Abstract
At the end of the XVIIIth. century, becoming a lawyer in Coimbra, Tomás Antonio Gonzaga wrote the Tratado de Direito Natural, with the intention to write the first book in Portuguese about the recent dispositions of natural law, joing the theological christian principles of the society's orientation. Basing in the original formulations about the concept of natural law, the purpose of this article is to discuss the concepts of Gonzaga, comparing with Grotius and Pufendorf, considered the founders of the "modern school of natural law", with Heineccius, who interpreted the ideas of these philosophers with a theological obliquity as Antonio Ribeiro dos Santos, his contemporaneous in Portugal. At the end, some considerations had been made about the conceptions of natural law observed on and after the government of Pombal, relating the interpretation possibilities from the magistrates, of the legislation in activity.
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Referências Bibliográficas
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Notas
(1). Doutoranda em História na Universidade Federal Fluminense. Orientadora: Professora Doutora Hebe Maria Mattos de Castro. Autora de Liberata - a lei da ambiguidade: as ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro : Relume Dumará, 1994.
(2). Até 1828, não havia cursos jurídicos no Brasil. Neste ano, foram criados os de Pernambuco (Olinda, logo depois Recife) e São Paulo. Antonio Luís Machado Neto, História das Idéias Jurídicas no Brasil. São Paulo : Grijalbo/USP, 1969.
(3). O Tratado de Direito Natural foi publicado pela primeira vez em 1942, numa edição organizada e prefaciada por Rodrigues Lapa. O texto figurava, até então, na Seção Pombalina da Biblioteca Nacional de Lisboa. O manuscrito foi copiado pelo pai de Tomás Antonio, o desembargador da Casa de Suplicação de Lisboa João Bernardo Gonzaga, e assinado pelo próprio autor. Consta que o historiador Luiz Camelo de Oliveira tirou uma cópia fotográfica completa do texto, e a editou em apenso aos Autos da Devassa da Inconfidência. O texto é considerado obra inacabada por alguns, já que principia com o título Livro Primeiro, mas não há continuações. Rodrigues Lapa, "Prefácio", in Tomás Antonio Gonzaga, Obras Completas. São Paulo : Cia. Editora Nacional, 1942. Afonso Arinos de Melo Franco, Terra do Brasil. São Paulo : Cia. Editora Nacional, 1939.
(4). Antonio Braz Teixeira. O pensamento filosófico-jurídico português. Lisboa : ICLP, 1983.
(5). Tomás Antonio Gonzaga. Tratado de Direito Natural. Rio de Janeiro : MEC / INL, 1957, p. 9.
(6). Lapa, op. cit., p. XV.
(7). Gonzaga, op. cit., p. 97/98.
(8). Gonzaga, op. cit., p.125/127.
(9). O interessante é que Gonzaga não defende a concessão de privilégios a sacerdotes, como livrá-los do pagamento de impostos. Para ele, como estes usufruem, como os outros, dos bens e da segurança proporcionados pelo Estado, devem pagar por isso.
(10). Machado, op. cit., p.18.
(11). R.C. Caenegem. Uma introdução histórica ao direito privado. São Paulo : Martins Fontes, 1995.
(12). Huig de Groot (1583-1645), jurisconsulto e diplomata holandês, autor de Sobre o direito da guerra e da paz (1623).
(13). Grotius. De jure belli ac pacis, Prolegomena, sec. XI, apud Ernst Cassirer. A Filosofia do Iluminismo. Campinas : Editora da Unicamp, 1994, p.323.
(14). Samuel de Pufendorf (1632-1694), jurista e historiador alemão, autor de Sobre o direito da natureza e das gentes (1672).
(15). Johann Gottlieb Heineccius, jurista alemão, autor de Elementos de Filosofia Moral.
(16). Heineccius, apud Paul Hazard. El pensamiento europeo en el siglo XVIII. Madrid : Alianza Editorial, 1991.
(17). Gonzaga, op. cit., p. 128.
(18). Gonzaga, op. cit., p. 91.
(19). Idem, p. 28.
(20). Machado, op. cit., p. 81.
(21). Relatório geral da Junta da Providência Literária que comunicava ao rei os malefícios dos jesuítas, feito em 1770. Este texto foi a base para a confecção dos novos Estatutos da Universidade. Antonio Manuel Hespanha. "Sobre a prática dogmática dos juristas oitocentistas", in A História do Direito na História Social. Lisboa : Livros Horizonte, 1978.
(22). A boa razão é definida nesta lei, que ficou depois conhecida por Lei da Boa Razão, como "aquela que consiste nos primitivos princípios, que contém verdades essenciais, intrínsecas, e inalteráveis... que os Direito Divino e Natural formalizarão para servirem de regras Morais, e Civis entre o Cristianismo". Hespanha, op. cit., p. 81.
(23). Uso moderno do Pandectas (código romano), na expressão cunhada pelo jurista alemão Stryk, em livro do mesmo nome. Nuno Espinosa Gomes Silva, História do Direito Português - fontes de direito. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 1991.
(24). 'Estatutos da Universidade de Coimbra", apud Arriaga, op. cit., p. 126.
(25). Suas idéias foram retiradas do livro de José Esteves Pereira, O pensamento político em Portugal no século XVIII. Antonio Ribeiro dos Santos. Lisboa : Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1983.
(26). Hespanha, op. cit., p. 73.
(27). "Que fiador têm os povos de que os magistrados pensaram como pensou o legislador?" Pereira, op. cit., p. 346.
(28). Estatutos da Universidade de Coimbra, cap. V, apud José Arriaga, A Filosofia Portuguesa, 1720-1820. Lisboa : Guimarães, 1980, 127/128.
(29). Gonzaga, op. cit., p. 146.
(30). Idem.

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