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quarta-feira, 4 de abril de 2012


DIREITO E IDEOLOGIA NA CONCEPÇÃO MARXISTA




Por Pablo Camarço de Oliveira


Karl Marx defende a idéia do materialismo histórico-dialético. Sob tal perspectiva, pretende-se analisar a realidade do mundo capitalista burguês do século XIX, percebendo como a ideologia se sobressai nesse estudo. E a relação íntima do Direito com tal ideologia.

O referido materialismo histórico-dialético significa, primeiro, que a história é o meio como homens reais se relacionam entre si por condições reais. Tal relação, porém, possui como motor a contradição. Ou seja, a história é um suceder de contradições reais. A principal destas é a exploração burguesa sobre o trabalho dos proletários. Como veremos, esta contradição desencadeia outras, e até mesmo algumas visam camuflar a contradição maior.

Esse método parte da realidade imediata, da aparência, para que, conhecendo das contradições, descubra a realidade essencial, e também como esta condiciona aquela. Como exemplo, vejamos a mercadoria: aparentemente, ela é uma coisa em si, com um dom natural de existir como coisa e de possuir um preço. Porém, uma análise apurada constata que a mercadoria é trabalho social concentrado, e que, por meio da mais-valia, representa, na verdade, exploração do trabalho pela burguesia.

Complementando essa idéia, vejamos a questão da inversão. A experiência imediata traz uma noção invertida: no exemplo anterior, a mercadoria, que é, em última instância, trabalho explorado, aparece como uma coisa de existência própria. Ora, é justamente a inversão que pretendemos analisar: quando os homens vêem a realidade imediata, têm dela uma visão que, na realidade essencial, corresponde ao inverso desta. E isso também se dá quando se toma a causa pelo efeito e vice-versa. Vejamos a enorme relevância disso: quando uma determinada divisão social do trabalho se consolida e é perpetuada pelas gerações, os homens vêem isso como um poder, visto que cada um não pode fugir do que é socialmente imposto. Isso é uma imposição de papéis, como se a sociedade estivesse impondo o dever de cada um na divisão do trabalho, frustrando as expectativas individuais, um poder estranho que domina os homens. Tudo isso quando, na verdade, os indivíduos são os que produzem aquela realidade. Trocou-se a causa pelo efeito.

Aprofundemos isso com algo conseqüente da divisão referida. A divisão de papéis inicia-se com a separação sexual da procriação, depois se manifesta como separação dos papéis dos membros da família, após isso divide agricultura do pastoreio, depois estas do comércio. Continua se aprofundando até separar trabalho espiritual ou intelectual de trabalho material ou manual. A partir daí, a classe dominante – detentora do trabalho intelectual – produz suas idéias. Como, porém, a burguesia se mantém distante do labor direto com a matéria, suas idéias também distam do mundo material e real. Ora, ao invés de isso aparecer para os homens, o que aparece para eles é uma distância entre o mundo real e idéias, que significa para eles que as idéias são algo autônomo, estranho à realidade, superior à matéria, que a comandam. É justamente tal crença na superioridade das idéias sobre o mundo real que permite a consolidação da ideologia, pois esta, aparentemente, é algo independente da matéria e é capaz de explicá-la. E como a realidade tende a ser vista de modo invertido pelos homens, o senso comum absorve a ideologia.

Essa ideologia opera outra mudança mais profunda. Os interesses da classe dominante, por meio de universais abstratos, parecem ser o interesse de todos. Usaremos, agora, o que Gramsci chama de hegemonia: a situação em que a ideologia dominante está de tal modo interiorizada pelo senso comum que ninguém se arrisca a combatê-la. A crise da hegemonia, então, implica que, além da crise política e econômica, os valores e idéias estejam decadentes. Quando isso ocorre, uma classe emergente aparece com a bandeira dos interesses coletivos, universais – os de todos os dominados – e consegue tomar o poder. Ao chegar lá, porém, essa classe passa a defender apenas seus interesses. Contudo, a ideologia é tão poderosa que, mesmo que os dominados percebam que os novos dominantes estão lutando pela sua classe apenas, as idéias e valores que eles defendem quando da ascensão ao poder são de todos, já foram aceitos pelo senso comum. Estabelece-se aí a hegemonia.

Porém, tal imposição vai precisar de um suporte efetivo. É aí que se vislumbra a importância do Estado, que dispões de meios coercitivos e de repressão social. Esse Estado vai aparentar defender os interesses coletivos contra os individuais, contra os desejos particulares. Ele corporifica os interesses da classe dominante sob a bandeira do interesse geral, coletivo. Porém, o Estado não pode ser percebido como violência institucionalizada, pois isso negaria a subordinação pelos dominados. Como, então, o Estado adquire um caráter impessoal e anônimo? Com o Direito, que, por meio de toda a sua doutrina, não só torna os atos do Estado legais – mesmo que representem a violência declarada – como também torna legítimo o legal. Além desse enorme suporte do Direito, a ideologia difunde suas idéias pela Moral, pela Igreja, pela Escola.

Vejamos transparecer a ideologia burguesa ao defender direitos que pertencem a todos. Os exemplos clássicos são o direito à liberdade e o direito à igualdade – direitos que, essencialmente, visaram eliminar a condição desvantajosa da burguesia durante a Idade Moderna –, que podem ser vistos quando se realiza um contrato. Supondo que todos são proprietários – quer do capital, da renda da terra ou do trabalho –, todos são considerados iguais e têm a liberdade de fecharem contratos entre si para assegurar a melhoria de vida a todos. A verdade, porém, é que o trabalho é forma de exploração e, portanto, a igualdade e a liberdade são ilusões jurídicas; quem realmente define a melhoria das condições são os detentores dos meios de produção. Outro exemplo: é típico da ideologia burguesa dizer que o direito à educação é um direito de todos. Essa idéia parece contraditória com a realidade de grande número de analfabetos. Porém, isso camufla a contradição real, que se dá entre os que produzem a escola – e, portanto, vendem seu trabalho – e os que dela usufruem, já que o pedreiro e o carpinteiro da escola não têm recursos suficientes para assegurar a educação a seus filhos, o que reconduz à velha exploração do trabalho.

Outros exemplos mostram a ideologia, bem como o seu poder. Como o pensamento burguês é eminentemente “machista”, os movimentos feministas lutam pela igualdade de oportunidades no mercado de trabalho e pelo direito de uso e disposição do próprio corpo (não o submetendo ao domínio masculino). Ora, estão defendendo a igualdade (de serem exploradas no trabalho) e o direito natural da liberdade de dispor o próprio corpo. Ou seja, estão reafirmando os valores burgueses. Isso não significa a inutilidade desses movimentos, mas mostra que não atacam a essência da ideologia, o que confirma seu poder. Veja-se o exemplo da família; lembremos, entretanto, que não existe “a” Família, pois as classes produzem famílias diferentes, mas a ideologia usa da abstração. Na classe burguesa, o adultério feminino é condenável por representar dispersão do patrimônio, por isso é tipificado como crime. Já na família proletária, que deve reproduzir a força de trabalho, proíbe-se ou dificulta-se o aborto e o acesso a anticoncepcionais. E a família pequeno-burguesa, que tem o pai autoritário (para compensar o não acesso ao poder real maior do Estado) e a mãe “doméstica” (para não disputar espaço com o pai, seja em casa, seja fora, no mercado de trabalho). E os ideais vão se difundindo...

Assim, pôde-se enxergar a ideologia como elemento de dominação; pôde-se ver suas características e o enorme poder que representa sobre os indivíduos. A visão apressada dos críticos enérgicos de Marx reduz a superestrutura à base econômica, o que traz uma contradição. Se não, vejamos: cremos estar demonstrado que a ideologia exerce papel também ativo sobre sua base real, consolidando sua reprodução nela. Então, das duas, uma: ou a visão simplista dos que negam veementemente a idéia marxista é insustentável por se contradizer no quesito atividade/passividade da ideologia; ou a consideração que Marx fez sobre o papel também ativo da ideologia está errada. A despeito das divergências que possamos ter para com Marx, a segunda hipótese parece a mais sólida. Não obstante parecer que Marx leve sua teoria sobre a ideologia aos extremos (faltando muito pouco para considerar ideologia a descrição do que ocorre até mesmo na natureza), a sua contribuição é de enorme valia para um espírito crítico. Ser crítico é uma postura não só exigida, como necessária aos bons acadêmicos da atualidade, num mundo que tenta fazer crer a todos uma visão meramente fragmentária (para não dizer distorcida) da realidade tal como é. A questão de aceitar ou não o socialismo marxista é matéria de outra abordagem, que foge aos objetivos deste ensaio...


REFERÊNCIAS

István Mészáros. Filosofia, Ideologia e Ciência Social.
Marilena Chauí. O que é Ideologia?
Marx e Engels. A Ideologia Alemã.
Thomas Ransum Giles. Estado, Ideologia, Poder.

fonte: faculdade de direito do piauí


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