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domingo, 31 de janeiro de 2010

A Constitucionalidade da Discriminação Positiva



por Fernando Trindade
1. Discute-se sobre a constitucionalidade da chamada discriminação positiva ou, como preferem alguns, ação afirmativa.
2. De nossa parte, estamos convicto de que a Constituição de 05 de outubro de 1988, não só não veda a adoção de medidas nesse sentido, mas, antes, favorece.
3. Com efeito, já no seu preâmbulo, a nossa Lei Maior estabelece como objetivo da Assembléia Nacional Constituinte a instituição de um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais (...) a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (...).
4. Note-se que o legislador constituinte não afirmou que, por ocasião da promulgação do Estatuto Magno, tal Estado já exista. Não. Ele está posto como perspectiva, como objetivo a ser alcançado pela aplicação da Constituição.
5. Por outro lado, o art. 1º da Lei Maior estabelece como fundamentos da República Federativa do Brasil a cidadania (inciso II) e a dignidade da pessoa humana (inciso III).
6. Outrossim, o art. 3º estatui que a República Federativa do Brasil tem como objetivos fundamentais: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. (Grifo nosso)
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7. Neste ponto, devemos recordar lição de CARMEM LÚCIA ANTUNES ROCHA quando a ilustre Professora registra que os verbos utilizados pelo legislador constituinte para definir os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil são verbos que evocam ação: construir, erradicar, reduzir, promover etc. (Cf. Ação afirmativa – O conteúdo democrático do Princípio da Igualdade Jurídica, Revista Trimestral de Direito Público, 15/1996, 92).
8. Desse modo, para que os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil sejam alcançados, reclamam comportamentos ativos ou, dizendo de outro modo, pedem ações afirmativas.
9. E ações afirmativas da parte de quem? Da sociedade e do Estado (v.g. art. 194, caput).
10. De outra parte, o art. 5º, caput, firma que todos são iguais perante a lei, garantindo, ademais, aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à igualdade.
11. Note-se que esse dispositivo prevê dois níveis do princípio da igualdade. O primeiro deles, que abre o dispositivo, estabelece o direito à igualdade formal: Todos são iguais perante a lei (...). Já o segundo nível do princípio da igualdade contido no art. 5º da Lei Maior está na segunda parte do preceptivo e estabelece o direito à igualdade material. Assim, Todos são iguais perante a lei (...) garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito (...) à igualdade (...).
12. Dessa forma, o primeiro nível definiria uma dimensão, por assim dizer, passiva, do princípio da igualdade: a lei será aplicada igualmente a todos. O segundo nível traria uma dimensão ativa do princípio da igualdade e, segundo entendemos, seria pressuposto da legitimidade do primeiro: o Estado garante a todos o direito à igualdade.
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13. E, a propósito do princípio da isonomia, ensina CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO:
“Em verdade, o que se tem de indagar para concluir se uma norma desatende a igualdade ou se convive bem com ela é o seguinte: se o tratamento diverso outorgado a uns for ‘justificável’, por existir uma ‘correlação lógica’ entre o ‘fator de discrímen’ tomado em conta e o regramento que se lhe deu, a norma ou a conduta são compatíveis com o princípio da igualdade, se, pelo contrário, inexistir esta relação de congruência lógica ou – o que ainda seria mais flagrante – se nem ao menos houvesse um fator de discrímen identificável, a norma ou a conduta serão incompatíveis com o princípio da igualdade.” (Cf. Princípio da Isonomia: Desequiparações Proibidas e Desequiparações Permitidas, Revista Trimestral de Direito Público, 1/1993, p. 81/82).
E mais:
“...sempre que a correlação lógica entre o fator de discrímen e o correspondente tratamento encartar-se na mesma linha de valores reconhecidos pela Constituição, a disparidade professada pela norma exibir-se-á como esplendorosamente ajustada ao preceito isonômico. Será fácil, pois, reconhecer-lhe a presença em lei que, ‘exempli gratia’, isente do pagamento de imposto de importação automóvel hidramático para uso de paraplégico.” (Cf. ob. cit, p. 83).
14. Por seu turno, esclarece FÁBIO KONDER COMPARATO:
“Para se entender o verdadeiro sentido da lei, no enunciado do princípio da isonomia, é preciso recolocá-lo no quadro intelectual e político do século XVIII europeu, onde foi declarado, não se podendo, todavia, esquecer as suas matrizes históricas, situadas na experiência democrática ateniense.
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Para Rousseau, o fundamento legitimador da sociedade política é o pacto de submissão de todos às deliberações que sejam do interesse comum, ou seja, a supremacia da vontade geral sobre as vontades particulares. A vontade geral manifesta-se por meio de leis e só pode exprimir-se dessa maneira. A lei não é, pois, uma deliberação coletiva qualquer, mas somente aquela que ‘parte de todos para se aplicar a todos’.
Bem se vê, portanto, que o caráter geral da lei supõe uma igualdade absoluta dos cidadãos, tanto em sua votação, quanto em sua destinação.” (Cf. Igualdade, Desigualdades, Revista Trimestral de Direito Público, 1/1993, p. 71).
15. Assim, o igual tratamento pela lei, para ser legítimo, pressupõe uma igualdade de fato preexistente.
16. A propósito, o Presidente LYNDON JOHNSON, ao pronunciar o discurso que inaugurou a ação afirmativa nos Estados Unidos, em 4 de junho de 1965, na HOWARD UNIVERSITY, indagou se todos ali eram livres para competir com os demais membros da mesma sociedade em igualdade de condições. A resposta – óbvia – era que não.
17. De outra parte, registre-se que, como Constituição analítica que é, a nossa Carta, para além dos princípios, previu, no seu texto, medidas de ação afirmativa. Nesse sentido, o seu art. 37, VIII, dispôs que a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de admissão dessas pessoas.
18. É assim que a Lei n.º 8.112/90, que estabeleceu o regime jurídico único para os servidores da União, contém, no § 2º do seu art. 5º, o seguinte preceptivo:
“Art. 5º .................................................................
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§ 2º Às pessoas portadoras de deficiência é assegurado o direito de se inscrever em concurso público para provimento de cargo cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que são portadoras; para tais pessoas serão reservadas até 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas no concurso.”
19. Perceba-se que o legislador constituinte previu a reserva de percentual de cargos públicos para as pessoas portadoras de deficiência se utilizando de medida concreta usual no direito internacional para concretizar medidas de ação afirmativa.
20. Aliás, CARMEM LÚCIA ANTUNES ROCHA explica que a fixação de percentuais mínimos para favorecer minorias é medida que busca manter a ação afirmativa dentro dos limites da razoabilidade:
“Para se evitar que o extremo oposto sobreviesse é que os planos e programas de ação afirmativa, nos Estados Unidos e em outros Estados, primaram sempre pela fixação de percentuais mínimos garantidores da presença das minorias que por eles se buscavam igualar.” (Cf. ob. cit. p.88).
21. Por outro lado, é também a Professora CARMEM LÚCIA ANTUNES ROCHA quem recorda que o art. 170 do Estatuto Magno, no seu texto original, arrolava entre os princípios da ordem econômica o tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte (art. 170, IX), o que configura ação afirmativa em prol dessa espécie de empresa (Cf. CARMEM LÚCIA ANTUNES ROCHA, ob. cit., p. 95).
22. O pressuposto para essa desigualação parece-nos ser a convicção de que as empresas favorecidas devem ter proteção estatal para que não sejam inviabilizadas pelo princípio da livre concorrência, também albergado pela Constituição (art. 170, IV).
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23. Registre-se que esse inciso foi alterado pela Emenda Constitucional n.º 6, de 1995, que lhe deu a redação seguinte: tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.
24. Perceba-se que a emenda constitucional não modificou o normativo quanto a ação afirmativa nele contida, o que indica que o constituinte reformador, tanto quanto o originário, acolheu a regra da desigualação para igualar.
25. Adende-se, ainda, que o § 2º do art. 5º da Lei Maior preceitua que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
26. Da perspectiva da nossa legislação infraconstitucional, é ainda CARMEM LÚCIA ANTUNES ROCHA quem recorda ação afirmativa contida na Lei nº 8.666/93 (Lei das Licitações e Contratos da Administração Pública, ob. cit., pp. 96/97).
27. Ela está contida no inciso XX do art. 24 dessa lei e estatui que é dispensável a licitação na contratação de associação de portadores de deficiência física, sem fins lucrativos e de comprovada idoneidade, por órgãos ou entidades da Administração Pública, para a prestação de serviços ou fornecimento de mão-de-obra, desde que o preço contratado seja compatível com o praticado no mercado.
28. Cabe aqui recordar que a primeira ordem executiva federal que concretizou a ação afirmativa nos Estados Unidos, em 1965, determinava que as empresas empreiteiras contratadas pelas entidades públicas ficavam obrigadas a uma ‘ação afirmativa’ para aumentar a contratação dos grupos minoritários da população (Cf. CARMEM LÚCIA ANTUNES ROCHA, ob. cit., p. 87).
29. Por outro lado, a legislação eleitoral vem adotando medida de ação afirmativa em favor do sexo feminino. Nesse sentido, a Lei nº 9.100/95,
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que regulamentou as eleições municipais de 1996, estabeleceu, no § 3º do seu art. 11, que vinte por cento, no mínimo, das vagas de cada partido ou coligação deverão ser preenchidas por candidaturas de mulheres.
30. Já a Lei nº 9.504/97, que tem o objetivo de ser lei eleitoral permanente, estatuiu, no § 3º do seu art. 10, que, do número de vagas resultante das regras previstas naquele artigo, cada partido ou coligação deverá reservar o mínimo de trinta por cento e o máximo de setenta por cento para candidaturas do mesmo sexo.
31. Atente-se para a fórmula adotada, que limita em um mínimo de trinta por cento e um máximo de setenta por cento das vagas para cada sexo, buscando um relativo equilíbrio entre os gêneros no que diz respeito às candidaturas parlamentares.
32. Para concluir, cabe recordar as seguintes palavras do Professor FÁBIO KONDER COMPARATO:
“(...) objeto da isonomia é a igualdade de normas, enquanto que as chamadas liberdades materiais têm por objetivo a igualdade das condições sociais. No primeiro caso, a igualdade é um pressuposto da aplicação concreta da lei; ao passo que, no segundo, ela é uma meta a ser alcançada, não só por meio de leis, mas também pela aplicação de políticas ou programas de ação estatal. Não há, pois, por que se pretender apagar ou escamotear as desigualdades sociais de fato entre os homens, com a aplicação da isonomia. Como bem afirmou Rousseau, ‘sob os maus governos’ essa igualdade é aparente e ilusória; ou seja, é meramente formal, como disseram ao depois os marxistas. E isto, porque a abolição dos estamentos e a submissão de todos à lei votada por todos, ou por seus representantes legítimos, não significa, por si só, a equiparação de fortunas ou modos de vida. Os ‘maus governos’ a que aludiu o autor do ‘Contrato Social’ são, exatamente, os que procuram justificar sua omissão no campo das desigualdades sociais com o princípio da igualdade de posição jurídica individual;
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quando uma coisa não se confunde nem dispensa a outra.” (ob. cit., p.77/78
Ante todo o exposto, a nossa opinião – como já adiantado no início deste texto – é a de que, em tese, são constitucionais medidas de ação afirmativa que visem proporcionar igualdade a minorias, inclusive medidas que, por exemplo, fixem percentuais a serem ocupados por essas minorias em obras e serviços públicos ou em universidades públicas.
Na verdade, consoante lição de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, acima transcrita, a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de leis nesse sentido depende de se o tratamento diverso outorgado à minoria for ‘justificável’, por existir uma ‘correlação lógica’ entre o ‘fator de discrímen’ tomado em conta e o regramento que se lhe deu. Se assim for, a norma ou a conduta são compatíveis com o princípio da igualdade; se, pelo contrário, inexistir esta relação de congruência lógica, a norma ou a conduta serão incompatíveis com o princípio da igualdade.
Consultoria Legislativa, em 29 de junho de 1998.
FERNANDO TRINDADE
Consultor Legislativo

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